sábado, 4 de outubro de 2014

EXERCÍCIO PARA COISA ALGUMA

J. EMANUEL QUEIRÓS
DR
Nunca dantes poderia imaginar que algum dia estaria a escrever sem caligrafia, sobre uma folha virtual de uma tela de vidro, na ausência de impressão gráfica directa em matéria física, fazendo-o para literalmente ninguém ou para alguém que ignorará sempre o que eu possa pensar no decurso da produção deste texto e, obviamente, me concede a dispensa de qualquer opinião. Ainda mais, tratando-se, agora, de um exercício intencional que incide sobre nada, como assunto, num arrazoado absolutamente indiferente a quem o possa ler, sabendo de antemão que vai ter legiões de não-leitores dispersas pelo mundo, para quem é completamente normal saber da inutilidade deste exercício. Mas, o facto é que no vazio silencioso e asséptico dos bio-equipamentos que me estão disponíveis e assombrosamente mobilizam os impulsos cerebrais de comandamento mental-emocional, o que mais apetece transmitir, por toda a indiferença que me é dispensada, com a responsabilidade de quem faz por cumprir uma cidadania pró-activa no sentido de melhorar alguma pequeníssima parcela do mundo em presença e lembrando o quanto já antes foi dito sem cair na falta de originalidade de o repetir, é exactamente o nada comunicar que na hora se impõe por dever cívico. 

Isso mesmo!... O nada feito do silêncio timbrado nos ruídos do mundo, marcado pela negação de som passado em escrita virtual à não-matéria imperecível de uma núvem imaginária, trazido à letra de forma numa ausência de impulso impensado, povoando um texto silencioso e sem palavras. Tudo isto reflectido num espaço em branco, inibindo a razão e tendendo a impedir a execução de alguma arquitectura ao pensamento. Sem uma única ideia esboçada em desenho, capaz de nada transmitir no silêncio ou em ruído, que nada suscite em alguém colocado ao sol ou à sombra, nem um só juízo, nem um comentário ou uma emoção. Melhor, o nada trazido à luz no seu próprio vazio, cumprindo um texto que negue o senso, a escrita e a crítica, sem comprometer a comunicação e por si fecunde a sua inutilidade nas sementes do diálogo. Será, talvez, uma pretensão excessiva e arrojada para a dimensão tamanha da nulidade de alguma coisa consubstanciada em nada, querer nela a negação do texto escrito e do senso não expresso de alguma ideia inútil e esvoaçante, como se assim possa levar consigo a imponderabilidade inocente do pensamento original antes de qualquer lógica humana se fazer à vida.

Se escrever sobre nada é possível, embora sendo pouco plausível e desnecessário, sem visar concretização alguma de uma só ideia útil em concreto, sem causar qualquer impressão ao leitor, então, esta é a oportunidade em que essa bolha sem nexo nem sentido útil para o pensamento comum, faz sentido tornar-se o tema em referência. A pretensão de que se torne um nada referenciável é nenhuma e reserva a não-expectativa que dispense impulsionar a sua leitura mais-do-que por sua absoluta inutilidade. 

A declaração da afirmação pública de coisa alguma não é filosófica ou ideológica, nem é uma espécie de posicionamento estratégico feito num compasso de espera para oportunidade mais adequada. Nada disso! É uma espécie de síntese ontológico-política que vem ganhando respaldo na percepção e na própria aferição do estado do Mundo. É nessa direcção, plena de futilidades e ruídos, intensamente preenchida de vazios e ocasos sem sentido, desabitada de humanidades, acriticamente adoptada e seguida sem questionamento autónomo em que vamos ensaiando a precipitação sobre o abismo. Antes o nada ou coisa alguma, para todos. Assim seja.

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