terça-feira, 19 de maio de 2015

METÁFORAS

REGINA SARDOEIRA 
Eu soube que o mundo não seria salvo pela lava daquele vulcão, e dos outros todos. Logo que o soube, pensei que tinha sido acometida por um pensamento estranho, pois a lava de qualquer vulcão não existe, aí, para salvar o mundo dos homens, ou seja de quem for, a lava dos vulcões é um produto natural com consequências que apenas dizem respeito aos vulcões e à natureza mas que nós, homens, desarreigados da natureza, fazemos incidir sobre a humanidade, para dar-lhe um sentido que nunca teve. Sei bem que o pensamento expresso é metafórico e é o mesmo que dizer que não há salvação, nem salvador, nem nada, porque essa ideia é tão utópica quanto inútil. O mundo dos homens está desgovernado, e parece que desgovernado continuará, construído que tem sido nas espirais da ganância e nas linhas condutoras do egoísmo e da insanidade. Enquanto não for possível reconquistar a velha racionalidade – ou a nova, se nova existir – nada será salvo e o homem perder-se-á.

Ninguém se salvará, por fim: nós, porque deveríamos ter gritado e calámo-nos; eles, porque deveriam ter-nos impelido a gritar e viraram insolentemente as costas. Esta absurda passividade desbragada em que esperamos uma salvação vinda pelo meio das nuvens, em céus, porventura tenebrosos e violáceos, ousando querer que o todo-poderoso desça num vórtice de luz e nos estenda a mão, sem que demos um passo para derretermos a nossa miséria, é, sem dúvida, o maior perigo da humanidade.

Eu nem sei se precisamos de ser salvos ou, no mínimo, de que precisaremos, afinal, de ser salvos. Quem está perdido e reconhece a sua perdição e quer encontrar um porto de abrigo, mais vale começar o caminho, desde logo, em vez de implorar misericórdia: e os caminhos fazem-se, caminhando. Lugar-comum, dir-me-eis, mas nunca receei um preceito vulgar se afinal ele for profícuo e vêde: os carreiros das montanhas existem porque um e depois outro e a seguir dezenas e centenas os foram, aos poucos, esculpindo. 

Bem sei que escrevi gritar e calar e agora falo de caminhos e passadas. Mas o grito pode ser de Avante! E o silêncio pode ser de Desisto! Ora, o incitamento para a frente será a salvação a que quis aludir, embora a minha sentença seja céptica, pois afirmo que ninguém se salvará, por fim.

Vejo, quotidianamente, multidões acéfalas em ordeiros rebanhos para nenhures ou então digladiando-se do alto das tribunas ou nos campos de batalha. Não creio na eficácia dos condutores de rebanhos, castradores das consciências dos que consideram reses, e o modo como empunham o gládio dos discursos conduz ao sofisma, e portanto ao logro, enquanto o sangue que espirra das baionetas espetadas não lava a miséria de estarmos todos vivos.

Tive todos os privilégios, mesmo quando me pareceram castigos, mesmo quando outrora rangi os dentes e arranquei os cabelos na perplexidade de me sentir numa prisão: mesmo então poderia ter usado, a meu favor, o lume da inteligência, o poder da razão. Ora o que em mim se agigantou nas horas indeléveis em que me travaram os passos, rumo a mim própria, foi apenas a emoção violenta, o desejo de fuga e talvez o propósito de vingança. Foi por essa razão, ou talvez para escapar às decisões cruéis, aos pactos incompletos, que me pus a sentenciar.

Soube que todos passaremos, depois, como sombras ou centelhas – a escolha será nossa – e aqueles que encontrarmos nas sendas da alvorada saudar-nos-ão com gritos de euforia, porque ficarão a saber que já não estão sós. E no entanto esse “depois” tardava em revelar-se e talvez nem me conviesse. Sombras ou centelhas? Que dizer de uma sombra que é sempre o rasto de outra realidade e não a própria realidade? Que dizer de uma centelha que é sempre um fogacho transitório, mesmo que de luz, mesmo que violento?

Por isso, os castigos que a vida pôs entre mim e o que quero de mim devem ter sido a sentença de vida a procurar a indicação para mudar de caminho, a seta apontada no sentido inverso àquele que usei seguir. Foram, pois, privilégios e ainda bem que o percebi, pois não é tarde demais quando a luz do dia, mesmo ensombrecida pelas nuvens de Maio e turvada pela chuva persistente, se vai rasgando após a noite e compelindo-me a, finalmente, viver.

Não existem impossíveis, pois a palavra impossível, contém a palavra possível, basta tirar o prefixo que nega…Para negar seja o que for é necessário que esse “seja o que for” tenha uma qualquer substância que possa ser negada e logo, tendo em si substância, deverá existir. Assim, qualquer impossível marca o advento do possível ou a sua anterioridade no tempo: foi possível, deixou de ser, é impossível, mas foi possível antes. Questão metafísica ou filosófica ou de qualquer âmbito, até do senso comum: qualquer um pode exclamar uma bela manhã, Não há impossíveis, e partir para as montanhas e ali viver de gafanhotos e mel. Principalmente, não esperes que te venha salvar seja quem for: tu és o teu único e legítimo salvador…ainda não reparaste que a vida vivemo-la, inevitavelmente, a sós? Nunca percebeste a solidão intrínseca do teu pensamento, a impossibilidade absoluta de comunicar uma ideia apenas, só uma, e obter de alguém a perfeita compreensão? E os salvadores!... Esses, de preferência te atiram ao abismo, se a escolha tiver que dar-se entre ti e eles: logo preferem ser os salvadores de si próprios… e porque haveríamos de criticá-los? Vê bem: podes ter um pequeno presente de dádiva pura no oceano dos dias…mas é sozinho que terás que prosseguir…não esqueças! Só tomando esta consciência extrema que parece um paradoxo na vivência do humano, mas afinal o resume, enquanto lucidez, estaremos na existência em serenidade suprema.

Comprei a bugiganga porque me apeteceu e logo que a tirei da bolsa, ansiosa, percebi que não a desejava e envergonhei-me. São assim os impulsos ou as frustrações ou a exposição acertada das coisas nos mostruários: de repente, um brilho salta, que até pode ser o reflexo do sol, que até pode ser uma ilusão óptica: e a insignificância ganha uma espécie de sumptuosidade e eis-nos a não poder resistir ao seu poderoso halo de sedução. Depois, há outra coisa. É que as bugigangas, como lhes chamei, nem sempre são fúteis ou inúteis, e pensamos honestamente que vamos ser capazes de lhes dar uso e até ansiamos por chegar a casa, desdobrar o embrulho e desatar a procurar a finalidade do utensílio. E contudo a vergonha pode instalar-se, se repararmos que nada de extraordinário pode vir-nos desse pequeno nada adquirido em hora repentina. É certo que, tal como o bolor que fez vicejar a flor miudinha, também a minha triste bugiganga da montra modesta poderá enfeitar de luz o espaço de um outro: e então ganhará sentido a oferenda, se após a súbita descoberta da inutilidade da coisa, para mim, puder fazer dela prémio, para outro. Percebemos deste modo que nem sempre as bugigangas são verdadeiramente futilidades e que, mesmo que nos envergonhemos do acto repentino, da fúria cega do impulso acéfalo e depois suspirarmos porque o prazer e a ansiedade se converteram em culpa, logo se dará a catarse e provaremos a nós próprios, sem equívocos, que houve um sentido não revelado, de imediato, no momento deflector, mas, apesar de tudo, lá, mesmo que indistinto.

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