terça-feira, 9 de junho de 2015

A RESPOSTA



Subia a Serra de Espinhaço de Cão, vinda de Aljezur, quando, por entre os pinheiros, pelo lado direito da
REGINA SARDOEIRA
estrada, rumo ao poente, entrevi, ao fundo, um cenário onírico. Estávamos num fim de tarde de Verão, o sol brilhava no céu límpido, e o mar, ao longe, cintilava, daquele azul opalino e transparente, (quase céu, quase fantasmagoria) e, como que depositada sobre a superfície líquida, uma cidade parecia emergir de uma almofada de areia, uma cidade com torres – quais castelos, vistos assim na lonjura translúcida da tarde – torres de outrora, parecia-me, depositadas por gigantes na textura oceânica. A ilusão persistiu durante algum tempo, a ilusão de que a estrada serrana descobrira uma quimera, pois logo soube que a cidade assim desvendada não podia ser outra a não ser… Portimão! Quem diria que a cidade algarvia, com os seus prédios incaracterísticos, feitos para o lazer fútil e para o consumismo demolidor, poderia ter semelhante dimensão mítica, vista, deste modo, por entre os pinheiros de uma serra? Iludida pelo esplendor fantasmagórico deixei a serra e desci os escassos quilómetros que me separavam da deusa emergente, qual Vénus explodindo no oceano ignoto. À medida que me aproximava, o encanto dissolvia-se em torrentes de carros fumegantes pelas avenidas, formigando pelos túneis, alastrando por múltiplas rotundas. O encanto diluía-se na proliferação das catedrais do consumo, nos Mac Donald’s e Hipermercados de todos os géneros, nos restaurantes e bares, nos hotéis…e o bafo africano transformou a temperatura amena do Atlântico de Aljezur em miasmas múltiplos e heteróclitos de muitas respirações. Desiludida com o subterfúgio, descrente da transfiguração de uma promessa de sonho num cenário cosmopolita de capital urbana, pensei que, ao menos, o mar estava lá, tinha que estar, para além do muro de betão das construções já despojadas da sua aura de milagre. O mar e a praia, as rochas de cor ferruginosa erguidas sobre o azul profundo, essas não teriam sido absolutamente corrompidas pela invasão catastrófica do lazer dos homens. Abafada e em angústia, dei voltas e voltas procurando um lugar de onde ver o prodígio marítimo, um pequeno buraco onde depositar a máquina e sair em busca de outras visões. No entanto, na cidade imensa e resfolegante, não havia um sítio , uma brecha, um pequeno miradouro para espreitar a vastidão! Saturada de ruídos de escapes, da visão alucinada da gente em busca dos prazeres orgiásticos, não vendo do mar senão uma pequena tira esbranquiçada subtraída à omnipotência das torres de habitação, voltei costas à cidade e regressei, já ao crepúsculo, e depois, pela noite estreme à serra do Espinhaço de Cão e a Aljezur. Não voltei a contemplar a cidade fantástica depositada no oceano, inocente e plena na distância, perdi de todo a visão mágica e perdi-a duplamente: primeiro, porque me aproximei demais e a realidade estraçalhou o sonho, depois, porque a noite na serra não me permitiu rever a fantasia.

São assim os homens. A beleza – esse conceito humano que não existe, enquanto objecto, mas apenas como ideia acrescentada às coisas – a beleza está lá, pode ver-se, fruir-se, captar-se na orla da pupila ou pela objectiva das máquinas. Mas, quando queremos tocá-la de perto entendemos que uma mistura cruel de prosaísmo e vulgaridade enfeitou de negritude o que era etéreo! Sei bem que no episódio narrado a culpa foi minha: quis indevidamente devorar aquela beleza, penetrar no sortilégio da cidade encantada depositada numa paleta azul e ouro, quis desvendar o segredo, em cima inviolado, e apressei-me a descer a montanha em busca da sua solução, quis possuir a beleza: e logo que o intentei, ela escapou-se-me entre os dedos. A Beleza é sempre o Longínquo, longínquo da posse, longínquo da captação, longínquo da necessidade de aproximação. Se tivesse deixado estar o sortilégio assim, à distância, recordaria Portimão como uma Vénus recém saída da concha parturejante, imaginaria, doravante, que a cidade algarvia com as suas torres e o seu bulício cosmopolitas se havia transmutado; ao querer ansiosamente observar de perto a miragem entrevista nos horizontes da Serra desfiz o enleio. E também são assim os homens! Em lugar de permitirmos que o longe permaneça longe, embrumado ou ensolarado e repleto de faíscas milagrosas, apressamo-nos a correr ao seu encontro ansiosos de guardar para nós uma esteira da poalha, derramada e significante, apenas na lonjura! Esquecemo-nos que a Beleza é «estar ali» submersa nas águas ou pendurada nos céus e que a terra que nos atrevemos a chamar nossa, mesmo não nos pertencendo, amarfanha, por via dessa suposta pertença, o esplendor da refracção, o delírio sublimado, a fantasia dos longes! Queremos conhecer, desesperadamente conhecer; e então, em vez de lua e de luar, esses que nos encantam as noites e nos lançam em arroubos poéticos ficamos com um planeta estéril, sem atmosfera, sem vida, mero satélite da Terra sem o qual a mesma se desintegraria! Em vez de estrelas cadentes em noites de estio, estrelas minúsculas que nos encantam em múltiplas cintilações, passamos a ter chuvas de meteoros, de calhaus efervescentes desprovidos de mágica, estilhaçados e em órbita nas solidões vazias do cosmos! E por aí adiante! O conhecimento mata a poesia, destrói a magia, escalpeliza o uno em fragmentos desprovidos de luz. Foi assim que os gregos inventaram a ciência e depois a filosofia: quebrando o uno primordial, procurando o elemento genésico, reduzindo o todo mítico e coeso à fractura das partes e acabando com um pedaço de cinzas entre os dedos – também eles calcinados!

Sejamos claros: o conhecimento é útil e eu, como muitos, procuro-o e desvendo-o, comungando na ânsia humana de decifração de enigmas; mas existe um limite, uma orla de mistério para além dos quais é pernicioso avançar, sob pena de nos encontrarmos face a face com a aridez extrema e com a descrença. Por outro lado, quanto mais avançamos na pesquisa do ignoto, mais nos defrontamos com a vastidão, sempre crescente, do desconhecido e da ignorância: as mais rebuscadas pesquisas científicas da nossa era assemelham-se a brincadeira de crianças por onde perpassa a dúvida, a suposição e a omnipotência da hipótese. Basta analisar o percurso científico das últimas décadas para entendermos que em lugar da certeza temos a dúvida, em lugar da lei, a probabilidade, em lugar da fórmula, a estatística. Poderá esta situação do conhecimento significar que o universo deixou de ser acessível à nossa inteligência humana, a partir de um certo grau de complexidade e de vastidão? Poderá significar que precisamos de ultrapassar a nossa limitação, conceptual e de princípios, a fim de podermos ver o invisível? Somos nós que nos detivemos num patamar específico de evolução, a partir do qual não poderemos lograr decifrar mais enigmas? Precisaremos de fender a carapaça da nossa auto-suficiência e abrir a mente e o corpo para novas caminhadas? Ou será que, muito simplesmente, o mistério, enquanto tal, continua a ser o horizonte privilegiado da busca humana pelo saber?

Quando penso na minha visão onírica, por entre os pinheiros da Serra do Espinhaço de Cão e na aproximação nefasta da realidade desvendadora e corruptora do sortilégio, parece-me que encontrei a resposta.


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