quinta-feira, 28 de abril de 2016

E NÃO SE SAUDARAM NA PAZ DE CRISTO...

ANABELA BORGES 
Desta vez, decidi dar-vos a conhecer, em “tranches”, o meu conto A Tundra (cemitério de memórias), premiado e publicado em 2011 pela editora Alfarroba. É um conto pelo qual tenho um apreço especial, já que, além de se tratar da minha primeira publicação, constitui um verdadeiro epítome do que são as minhas raízes, as pessoas e o lugar onde nasci; o meu norte e o Norte; raízes do profundo Portugal. Aqui vai:

E não se saudaram na paz de Cristo.
Lisinha baixava os olhos. Afligia-se por dentro numa aparente quietude, cruzava os braços curtos, os ombros ligeiramente encolhidos, esperava que o padre encerrasse a celebração, fazia o sinal da cruz e saía, muito lesta, a cabeça levantada, sem um pinto de cabelo branco à vista, no volume preparado com mise.
Até mais ver, senhores”, era o adeus apressado, atirado para os que se demoravam em conversas, no frescor indolente de mais um domingo acabado de nascer.
As missas assim não eram a mesma coisa. Não eram completas. Não se podiam as pessoas benzer com água benta, nem beijar, nem mesmo podiam comungar. Não, não eram verdadeiras missas.
Lisinha caminhava pensativa, as ancas a rolarem sobre as pernas curtas, “Bom dia, como está?”. Caminhava. Movia-se pela berma da estrada, passando, primeiro, pelas casas afidalgadas, devidamente gradeadas, exalando o cheiro adocicado do jasmim, que subia lentamente como se por ali rondasse mulher distinta e misteriosa, e do alecrim, que espalhava em redor o seu poder contra o mau-olhado, competindo com as malcheirosas arrudas, a esticar as suas pontas finas como dedos em direcção às portas das casas baixinhas, em pedra de cantaria, degradadas, com as chaminés a expelirem os cheiros untuosos do assado de domingo, ou dos rojões, ou do cozido, pelos caminhos de terra que Lisinha atravessava a seguir, “Até mais ver, se deus quiser”, metendo-se, por fim, pelo comprido canelho que a conduzia a sua casa, ligeiramente inclinado, escondido entre as ladeiras das talhadas irregulares dos quintais, exigindo cautela nos passos, por causa das pedras soltas e das finas raízes contorcidas que se espalhavam como gadanhas traiçoeiras, a sussurrar quem se mete por atalhos.
Passada a estreita vereda, Lisinha chegava ao seu domínio: o terreiro espaçoso, a casa robusta, as escadas largas em granito a subir para o quinteiro e daí para o sobrado, as grossas portas de madeira carcomida. Não era nenhum palacete. Era uma casa de muita lida, uma casa de comércio. Era o seu domínio. E era-o sobretudo ao domingo, quando se encontrava a sós com os seus pensamentos, na sua paz de espírito. E Lisinha vinha, o dissemos, particularmente pensativa, nesse dia, “Até mais ver, se deus quiser”, sem parar, sem se deter com a vizinhança, mais que fosse para dizer “Diz que vai estar bom, hoje. Disse no tempo. É bom para as vindimas. Até mais. Vamos tratar do almoço, que são horas”.            
Eram as missas que lhe andavam a fazer confusão. Sim, ela ouvia o que diariamente, na televisão, se dizia sobre esse diabo à solta, que tinha vindo do estrangeiro. Ouvia o que dizia a ministra da saúde, a senhora que tinha um ar de quem sabe sempre o que diz, com um sorriso sereno nos lábios; ouvia os doutores, de semblante carregado, que nem sempre pareciam tão seguros nos dizeres como a ministra; ouvia, enfim, os noticiários.
Lisinha sabia o suficiente sobre o bicho. Sabia que ele veio dos porcos e que dos porcos passou para as pessoas. Escondia-se atrás delas e punha-se-lhes às cavalitas, assim de um jeito que elas não o viam nem davam por ele, mas estava , imprevisível como a vida. Era negro como a noite e um tanto arroxeado, tinha cara de macaco e era um pouco felpudo. Mostraram uma imagem na televisão. E ela viu. Tinha uns braços fininhos, muito compridos e com muitos dedos para se agarrar bem. Assim andava, passando de pessoa para pessoa, multiplicando a sua figura, de tal forma que, por todo o mundo, era possível encontrar gente com ele às cavalitas. Depois, pesava-lhes como chumbo, dobrava-as, empalidecia-as, tirava-lhes as forças e atirava-as para os corredores dos hospitais, muito corcovadas, de olhos vermelhos como o diabo em pessoa, e daí para a cama. Alguns, mais tolhidos, mais fracos de físico, ou doentes dos órgãos, não resistiam ao ataque do malvado e vinham a falecer, pela força com que lhes comprimia os pulmões, ferindo-as com chios e arranhões de gatos, com amarfanhos de unhas aguçadas e invisíveis.
De demos, satanás, belzebus, tinhosos e mafarricos sabia Lisinha desde pequena. Figurou-se-lhe, desde cedo, que as fisionomias com que se apresentavam são as muitas de um anjo, um anjo negro e poderoso, o mais temido de todos os anjos. E não tinha medo. Cruzara-se muitas vezes com ele. Ele aparecia na forma de diferentes caretas, e Lisinha foi-o percebendo ao longo da vida, juntando visões atrás de visões, episódios atrás de episódios. No princípio, não sabia que ele podia andar por , no meio do povo, sem mais nem menos. Depois percebeu que sim. Andava. O diabo anda sempre. Aquele que raptou a menina e a manteve presa durante tantos anos, numa cave, e fez-lhe tanto mal, era um deles. Um diabo feito gente.
Uma vez, ela foi levantada por um, quando levava à cabeça um feixe de lenha recolhido entre o mato que o seu pai andava a cortar. Era um molho de lenha fina, escura e contorcida e era tão alto que parecia não ter fim, tão alto e desconjuntado, que nem ela sabia explicar como conseguia equilibrá-lo na cabeça. Lisinha não teria mais que onze anos. Estava um tempo sereninho, uma brisa morna sacudindo as folhas das carvalhas, na berma do caminho – o caminho que agora é estrada de asfalto, que conduz à cidade, que atravessa o percurso das casas afidalgadas com cheiro de mulher misteriosa (e as carvalhas ainda estão lá). Ele veio sem avisar, levantou Lisinha com a sua mão poderosa e transportou-a durante alguns minutos no ar, sempre a rodar, exibindo sobre ela o carão avermelhado, com um sorriso de orelha a orelha, os dentes muito largos e brancos a saírem-lhe dos lábios finos, o fogo a arder-lhe no olhar. Ninguém pôde acudir a Lisinha. Por mais que ela gemesse, com os braços curtos erguidos no ar, a segurar os paus engenhosamente postos uns sobre os outros, ninguém ouviu nem viu nada. Não havia, portanto, testemunhas. Tal facto, porém, não tornava o acontecimento menos digno de credibilidade e consideração, como a seguir veremos. Aqueles eram tempos em que se respeitavam os impulsos das forças maiores, viessem elas de onde viessem. Depois, a roda parou, a mão gigante pousou Lisinha muito direitinha com o molho à cabeça e ela seguiu o seu caminho, carregando, agora também, um desconforto frio e pesado no fundo da barriga, as ancas redondas a acelerarem-lhe o passo, a perna curta. Sem olhar para trás.
Vieram dizer-lhe que fora um remoinho, um torvelinho, coisas da natureza, que vão e vêm sem se dar conta. Pois, e então. Quem disser que nãomão do diabo nos rebuliços, pés-de-vento, ou buzaranhas, pode ser doido. E tinha razão.
Mais para a tardinha, Lisinha haveria de receber uma visita inesperada, que a transformaria para o resto dos seus dias, sem perceber que aquela pingadeira de sangue, que lhe sobrevinha pela boca do corpo, era também a natureza, que, marcando o seu compasso, cumpria o seu inequívoco papel de criadora. E quempãocriação. Lisinha rogou pragas ao maldito, limpando-se a toda a hora com as ásperas compressas de estopa, torcidas em água morna num alguidar metálico pousado rente à janela por onde entravam os últimos filtros de sol, no refúgio do seu quarto, no sobrado. Um desconforto frio e pesado no fundo da barriga, que ia e vinha. Sofreu em silêncio. Ou quase. Não podia evitar as imprecações, mas fazia-as em voz baixa, em jeito de esconjuro, num quase exorcismo, para talhar a grande enfermidade a que fora condenada. Ela sabia que, daí em diante, não seria a mesma. Havia nela o pressentimento de que se haviam acabado os dias de menina de colo de seu pai. Aquilo era feio. Tinha cheiro de pecado. podia ter mão do diabo. Não devia ter-lhe acontecido, “Maldito. Eu te esconjuro.” E jamais foi a mesma.


(para continuar…)

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