domingo, 20 de novembro de 2016

POSSIVELMENTE POSSÍVEL

MIGUEL GOMES
Por entre os pingos da chuva, na infinidade de espaços onde a água não se liquidificava, raiava o silêncio como se a estrada que nos levava lá fosse toda ela feita de soluços, como as sandálias a comprimirem o cascalho ou a túnica sacudida num vai e vem de gotículas a salpicar todas as outras que caíam.

Quando o tempo se sobra e se permite a veleidades veladas a quem não se dispõe ao acaso, tudo sobra para que até as tardes de Outono saboreiem sossegadas o aroma tépido de uma mão cheia de castanhas e, depois, o enfarruscado abanar das palmas, uma na outra, a modos de corpos de gente que se degusta.

Não há muito a redigir para quem, talvez como eu, uma ensolarada crepuscular idade basta para enternecer a visão gasta e os sentidos desapurados. 

Talvez por isso me perca um pouco a saborear o ruído do solo que se esmigalha a cada passo que dou pelo monte. 

Desconstruo as estradas por onde passo, faço por nem piscar os olhos, não me vá fugir paisagem quando as pálpebras se dedicam a claquear o horizonte como dando ordem ao cérebro gritando “acção!”. 

Desconstruo, também, o futuro. 

Voto-me à solidão como se apenas no calar da voz ouvisse e houvesse aquela miríade de possibilidades que se soltam de uma inspiração, de uma expiração, onde a sinceridade e honestidade típica do vazio prevalecesse. 

Rio-me com o desequilibrar típico de quem se desvia de carreiros de formigas ou de gafanhotos que, garbosamente, exibem diferentes tonalidades como tontos e desconexos arco-íris monocolores precipitando-se entre mim e o verde acastanhado das folhas que se deixam outonar. 

Há uma ou outra sardanisca, osga para os leigos, que corre assustada por entre dois ou três restos de ramos de pinheiros, pedras, por debaixo da caruma quem sabe imaginando-se de onde tal adamastoreidade possa surgir. 

Detenho-me num ou noutro pinheiro, sem as histórias que me suportam ou as palavras retratadas nos olhares de quem não se lê, para por momentos sentir na face a aspereza subtil e cuidada da casca resinada e resignada de quem vê o tempo passar e sorri, caruma ao vento, pelas intempéries que assolam a orla marítima de quem se observa por entre o mar e o mundo.

Os dias pequenos correm lestos, primeiro pela madrugada madrugadora, depois ao subir do calor possível que o Universo catatónico permite, para vir depois por aí abaixo até se deter no alaranjado atonado céu, onde as nuvens brincam aos padrões e se esgrimam em rendilhados pedaços de imaginação que me fazem, agora com frio, sentir que o dia se vive quando se deixa ser, dentro da possibilidade, possivelmente possível ou, matematicamente falando, reciprocidade de uma hipótese sem tese.

A Lua viu-se e desejou-se para nascer a poente de um horizonte, mas destinou-se que, como o caos, as palavras se permitam orbitar o cerne de um parágrafo crucificado.

Assim foi o desfocado ocaso, na cruz ou apedrejado, por entre pares e ímpares. mantenho-me aquecido no istmo que separa o falado e o calado.

Não havia espaço para mais, a metáfora terá que servir para o espaço incólume que deixou pendente porque, como sempre, não se sabia escrever e quem o poderia fazer, não o sabia ler.

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