segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

EMMANUELLE RIVA E JOHN HURT – O OLHAR DOS ATORES PERANTE A BÁRBARIE HUMANA

ANABELA BRANCO DE OLIVEIRA
A especificidade cinematográfica fica incompleta só com palavras. É muito difícil contar um filme através de palavras porque se esquece o valor do som, da música e do ritmo. É muito difícil contar por palavras a luz e as tonalidades de uma paisagem, a duração de um plano de ternura ou de medo, a expressão e o olhar dos atores. É difícil traduzir por palavras a força magnética que os atores exercem sobre nós! Eles constroem personagens inesquecíveis e nós assistimos a uma misteriosa metamorfose! Na nossa memória visual e íntima, eles jamais se desligarão das personagens que interpretaram.
Senti esse tipo de metamorfose e de atitude no passado dia 28 com a notícia do falecimento de Emmanuelle Riva (1927-2017) e John Hurt (1940-2017). Partiram os dois no mesmo dia e foram protagonistas de dois filmes que me marcaram profundamente. Emmanuelle Riva tornou-se a essência de Hiroshima mon Amour, de Alain Resnais, em 1959 e John Hurt tornou-se o Winston Smith de Nineteen Eighty-Four, de Michael Radford, em 1984. Dois atores que me transportaram de uma forma inexorável para o mundo literário de Marguerite Duras e George Orwell. Para mim, estes dois atores são, acima de tudo, estes dois filmes.
Deixaram-nos no mesmo dia! E deixaram-nos num período da nossa história em que precisamos muito de rever Hiroshima mon amour e Nineteen Eighty-Four. Porque são duas visões da barbárie humana. O rosto e o corpo destes dois atores tornam-se, nestes dois filmes, armas contra o esquecimento, a repressão e o extremismo. São obras que refletem sobre o medo e o avolumar da desumanidade no mundo, pela ascensão ao poder de ideologias despóticas que legitimam, por todos os meios, a sua superioridade.
Em Hiroshima mon amour e em Nineteen Eighty-Four, Elle e Winston representam a luta pela legitimidade do amor, a luta pela dignidade humana sem extremismos e sem preconceitos. Eles são as vítimas da barbárie e o símbolo de uma resistência altamente dolorosa contra essa mesma barbárie. Eles são os protagonistas de duas indiscutíveis reflexões sobre as consequências dos totalitarismos e dos extremismos.
No rosto de Emmanuelle Riva, espelha-se a inevitabilidade dos amores simples mas proibidos, a construção dos afetos, num mundo retalhado pela guerra, pelo ódio e pelo preconceito. Emmanuelle Riva concentra nos seus gestos e olhares, os amores proibidos pelo oficial alemão, durante a ocupação nazi em França. Concentra o sofrimento das mulheres perseguidas pela depuração da pós-libertação. Concentra, em Hiroshima, a reflexão sobre as consequências da bomba atómica e a decisão da escolha da vontade humana. Enquanto mulher, representa a inevitabilidade e a beleza do amor como primordial resistência.
No rosto de John Hurt define-se a vontade de lutar contra a tortura, a uniformização dos gestos humanos, a manipulação coletiva e a vigilância implacável! Ele concentra, nos seus gestos e olhares, uma força que tenta preservar o seu amor com Julia. Concentra, no seu rosto, a luta desigual contra a tortura, contra aqueles ratos que são os instrumentos macabros de uma sórdida lavagem cerebral. Ele é a força máxima de uma luta desigual contra sociedades totalitárias e contra o poder quase indestrutível do manipulador supremo. E nós vivemos num mundo de subtis manipuladores supremos.
Dois atores magníficos, protagonistas de sequências intensas. Quero partilhar convosco duas dessas sequências. Serão, ao mesmo tempo, uma homenagem ao seu talento e uma chamada de atenção para que, por um lado, a História de invasão nazi e a Bomba de Hiroshima não se repitam e, por outro lado, para que a terrível e distópica visão de George Orwell nunca seja uma realidade total. Porque ela existe, nos nossos dias, de uma maneira bem mais sofisticada mas igualmente incapacitante.
E escolho os grandes planos do rosto de John Hurt que definem o horror, o medo, a inevitabilidade de uma lavagem cerebral, a negação de um sentimento individual perante a manipulação suprema de um resistente que perpassa toda a sequência da tortura da gaiola dos ratos. A resistência de uma personagem à bárbarie de um regime. São planos rápidos, intensos, detalhados que nos fazem sentir a terrível experiência da personagem.
E escolho os olhos de Emmanuelle Riva que nos revelam a dimensão dos sentimentos e das emoções que troca com o seu amante japonês. É o seu corpo e o seu rosto que enunciam o que se passou em Nevers. É no olhar de Emmanuelle Riva que nos apercebemos da inevitabilidade da memória sobre o que se passou em Nevers e são as mãos dela que nos transportam para as mãos que arranham as paredes da cave de Nevers. E, na cave de Nevers, lambendo o sangue das unhas, Emmanuelle encarna as mulheres perseguidas pela depuração cruel construída no ódio da guerra. E temos duas mulheres, dois rostos, dois momentos chave em dois espaços diferentes: Nevers e Hiroshima.
John Hurt celebrizou-se através de outras personagens em Allien, O Oitavo Passageiro, O Homem Elefante, Harry Potter e a Pedra Filosofal, entre outros. Para mim, será sempre o Winston. Emmanuelle Riva celebrizou-se em Thèrèse Desqueyroux, Blue, entre outros. Em Amour, de Michael Haneke (2013) voltei a encontrar nela aquele olhar e aquela serenidade que exige o cumprimento do amor. Mas, para mim, ela será sempre a mulher de Hiroshima e a mulher de Nevers.
Nessa metamorfose entre ator e personagem, estes dois atores foram duas armas contra a bárbarie. Para que nada desse mal se repita.


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