quinta-feira, 3 de agosto de 2017

LER E VER AGOSTINHO

ARTUR COIMBRA
De quando em vez, vem à baila um Portugal Cultural que, pela sua raridade, merece a nossa maior atenção.

Como quando se fala de um português que viveu à frente do seu tempo, de seu nome Agostinho da Silva, e de quem já se celebrou o centenário do nascimento. Ainda bem que assim foi, dado que o nome do ilustre português que nasceu em 1906 e faleceu em 1994 era (e é) praticamente desconhecido do comum dos cidadãos. Um inquérito na Internet dava em tempos mais de 80% de respostas a indicarem absoluto desconhecimento de quem tenha sido, ou o que tenha feito. O que até nem admira, dado que estamos a falar de quem não foi um jogador de futebol, um artista de telenovela, um músico pimba ou um participante em concursos televisivos, áreas em que se tece a pretensa idolatria (os famosos…) dos tempos modernos.

Agostinho da Silva foi um filósofo que não queria discípulos, um pedagogo de fartos recursos, um poeta, um profeta, um português do mundo, poliglota (sabia 15 línguas), que percorreu as quatro partidas do planeta e que, como a canção de António Variações, outro homem à frente da sua época, só estava bem onde não estava. Irreverente e incómodo, na senda pessoana “ser descontente é ser homem”, não possuía bilhete de identidade e recusava-se a ter número fiscal de contribuinte, coisas por certo triturantes da sua umbilical forma de se sentir homem livre. Era um ser especial, que amava a liberdade acima de todas as coisas, prezava a criatividade e considerava que o homem “nasce para criar, para ser um poeta à solta”, e não para trabalhar, não para enriquecer os capitalistas, não para oprimir a sua primordial vocação de ser fundamentalmente bom e livre. Daí que muitos o tenham catalogado de visionário, ou de utopista, ou de louco, porque as suas ideias dificilmente se compaginam com as agruras e os espartilhos do quotidiano. Como atitude mental, pugnou pela unidade como forma de vida: ”não sou do ortodoxo, nem do heterodoxo; cada um deles só exprime metade da vida; sou pelo paradoxo que a contém no total”. Um pensamento global.

Mas Agostinho da Silva tinha carradas de razão em muitas das asserções que avançava: por exemplo, sobre a cultura, que “começa por todas as pessoas comerem o que devem comer” e só numa outra fase aparecem as necessidades do espírito. O que o levou à trilogia dos “S”: primeiro, o sustento, depois a sabedoria, por último a saúde. Ou sobre as qualidades ou defeitos das pessoas: “as pessoas têm características. Quando não gostamos delas, dizemos que são defeitos. Quando gostamos, chamamos qualidades”. 

Agostinho era desconcertante nas análises que defendia, por exemplo, quando afirmava: “claro que sou cristão; e outras coisas, por exemplo budista, o que é, para tantos, ser ateísta; ou, por exemplo, pagão. O que, tudo junto, dá português, na sua plena forma brasileira”. Um raciocínio sem lógica mas com coerência poética, que sabe bem ao entendimento.

Português do mundo, fundador de diversas universidades brasileiras, cultor das tradições populares, foi o percursor da comunidade dos países africanos de expressão portuguesa, que veria a luz da realidade após a sua morte.

Celebrar hoje Agostinho da Silva é honrar a sua rebeldia, a sua original e paradoxal forma de ser e viver. É sobretudo conhecê-lo, ler os seus livros de enorme importância para a cultura portuguesa contemporânea. À boleia do centenário, muitas obras de Agostinho foram reeditadas, outras continuarão à venda no mercado. A melhor homenagem que lhe poderemos fazer e que ele certamente mais apreciaria é ler as suas obras: Aproximações, Cartas a um Jovem Filósofo, Um Fernando Pessoa, Conversação com Diotima, e Pensamento à Solta, entre muitas, muitas outras.

E ver e ouvir as suas Conversas Vadias, que foram também reeditadas, em tempos.

Ler e ver Agostinho é a melhor forma de o compreender e o engrandecer, se possível criticando-o, como ele gostava, num espírito analítico e criterioso que deve ser seguido. Em todas as circunstâncias.

Para mais numa época, como a actual, de um pensamento amorfo, vazio, propagandístico, nivelado pelo rés-do-chão e de meras ideias-feitas!



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