terça-feira, 15 de julho de 2014

CLARIVIDÊNCIAS

REGINA SARDOEIRA
DR
O nosso tempo, este século XXI alucinado e alucinante, nada tem, de facto, que seja extraordinário ou sequer notável. Basta olharmos à nossa volta, com alguma circunspeção, e depressa entenderemos em que espécie de logro nos vamos acoitando, crentes de que nos doura uma superioridade ou uma inteligência que não existiam noutras eras e às quais  bruscamente aderimos no salto do milénio e do século. Falta-nos (porque os perdemos, reenviando-os para os nossos sucessores intelectuais – as máquinas) a criatividade, o engenho, a força, o génio, em suma! Falta-nos o vigor do intelecto, o culto da excecionalidade, o apego ao espírito de elite, o companheirismo na tarefa nobre, a união em torno de uma ideia, a luta por uma utopia, a crença numa doutrina, a experiência da comunhão…falta-nos tudo!

Outrora, acreditávamos no poder dos cérebros lucilantes e entregávamo-nos a eles, crentes de que os animava o espírito supremo e que, na senda deles, atingiríamos o nosso cume. Hoje, cada um de nós julga ser o paladino da virtude e da glória e, apegado às suas pequenas ilusões de bolso, desdenha modelos, chefes, paradigmas ou mestres.

Platão amou Sócrates e rasgou a sua obra poética quando percebeu o manancial infinito da filosofia – mas soube manter-se poeta e fê-lo nas espirais portentosas da alegoria e do mito; Aristóteles escutou e sorveu as lições de Platão na Academia –  mas partiu para a sua caminhada, orientando para a terra a mão que o mestre erguia para os céus; Kant seguiu Descartes e fez-se racionalista – até que David Hume o atingiu de chofre e lhe deu a mão, acordando-o do sono dogmático, e fez-se racionalista crítico; Hegel acalentou o kantismo – até entender a esquizofrenia lúcida do mestre de Königsberg e proclamar a unidade da Ideia Absoluta, na espiral infinita da progressão dialética; Marx fez-se hegeliano de  esquerda, na senda de Feuerbach – mas inverteu o idealismo dialético dando-lhe um cariz humanista; Nietzsche veio dos gregos, até Wagner e Schopenhauer, e de uns retirou a pureza trágica dos inícios, de outro a sublimidade heroica da ópera como catarse de um mundo que havia assassinado a aura trágica e do outro a vontade de viver, logo transposta e enunciada como vontade de poder; Freud inventou uma fantasia urdida nos êxtases oníricos  e nos sortilégios mesmerianos aglutinados à ciência de Charcot,  dela fez terapia, criando a psicanálise; Boole e Frege reanimaram a lógica aristotélica, à luz da matemática e nela se inscreveu Bertrand Russell; e mesmo Wittgenstein, o paladino dos eternos enigmas filosóficos, conseguiu brandir o atiçador para Popper e abandonar a sala pois, «sobre aquilo que não se pode falar deve manter-se o silêncio»*! Brandir atiçadores e abandonar a sala, para não ter que percorrer o caminho batido dos problemas filosóficos, esses, que constantemente se transmutam em enigmas, por muito que intentemos decifrá-los, venham ou não até nós o reino de todos os Poppers, rasgar poesia inútil quando a filosofia nos acena com cânticos e maravilhas, ouvir o sentido da terra em choque com os arquétipos do empíreo,  arrasar a arrogância wagneriana e eleger um super-homem que é o caminho do homem, ele próprio uma ponte esticada entre o animal e o super-homem, criar uma fantasmagoria esquizofrénica em colisão com os dogmas urdidos num racionalismo metódico… eis o que hoje não somos capazes de fazer, pois trava-nos o ressentimento, e só sabemos tapar os ouvidos e seguir, atarantados, as nossas vielas tortuosas  – mesmo quando a inteligência solta os seus clarins!

Toda a gente escreve e pinta e esculpe, toda a gente faz política e sobe às cátedras, debitando um saber frouxo, urdido na mentira do tempo, toda a gente ascende à ribalta, erguendo a voz e enfunando o peito, ousando permitir que os holofotes lhe desvendem a terrível carranca, toda a gente sabe sempre tudo e sempre mais que toda a gente! Ninguém acolhe o conselho do mais sábio, ninguém respeita a hombridade do mais reto, ninguém ouve a crítica do mais justo, ninguém aceita a correção do mais atento. Parece que os próprios bebés trazem em si o conhecimento todo no ato de nascer e, quando crescem, é como se nada pudessem já aprender, velhos que começam desde logo a ser,  para as arenas sublimes do convívio com os predestinados. E é por isso que hoje, os lúcidos todos se calam e se escondem, receosos que os descubram e os confundam com esses néscios vindos de nenhures e para nenhures caminhando – e todavia crentes na sustentabilidade do que os tornou célebres. Por isso, não procureis o génio nas montras dos livreiros, nas paredes das galerias, nos ecrãs dúbios dos vossos cinemas privados, nas magazines fanadas ou nos slogans publicitários; sabei que eles estão mudos e assim permanecerão até que este tempo se esgote e dele nasça, num parto aterrador para os que até agora reinaram, a saga do futuro. Creio nesse tempo e só a ele me rendo!

*Ludwig Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico, Fundação Calouste Gulbenkian 

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