terça-feira, 16 de dezembro de 2014

BLOWIN’ IN THE WIND – I PARTE

REGINA SARDOEIRA
Blowin’ in the wind* é um poema-canção susceptível de ser tratado filosoficamente, na exacta medida em que, na aparente simplicidade da sua linha condutora, nos remete para o questionar fundamental da humanidade, sem contudo fornecer a menor sombra de resposta.
Deixando de lado, temporariamente, o aspecto lírico-musical, para nos concentrarmos no seu sentido intrínseco, percebemos de que modo este texto pôde tornar-se um hino, as palavras proféticas da voz de uma geração, no contexto temporal em que foi composto, na especificidade concreta do espaço social e físico em que se enquadrou (1962, EUA); mas entendemos ainda a peculiaridade que pôde transformá-lo numa obra perene, muito para além da mensagem de protesto, do grito inflamado de um jovem dirigido às consciências perras do seu tempo. É simultaneamente compreensível e paradoxal que o seu autor houvesse recusado, desde aquela época até aos dias de hoje, o título de «voz de uma geração» ou de «profeta» e demais epítetos com que o rotularam e são conhecidos até à saciedade. É compreensível na justa medida em que aceitar ser o porta-voz de uma geração quando se tem pouco mais de vinte anos e todo um caminho pessoal a percorrer, ver-se amarrado a um título, honorário e vitalício, e assumi-lo seria a sua própria condenação, seria deixar pender às costas uma espécie de cruz de martírio e ter que nela dar a vida pela geração de quem concordaria ser a voz; mas é paradoxal se atendermos ao carácter radical das questões que o poema enuncia, se absorvermos que o seu autor era um jovem e que as palavras lhe brotaram, exatamente assim, do fundo do ser para a folha de papel.
São nove perguntas ou, por outro lado, nove acusações, se quisermos desde já aceitar que Bob Dylan intentava com elas dar corpo a uma forma de protesto; e, contudo, a resposta vai ressoando no vento, é inefável, flutuante, efémera, inalcançável e subtil, não é para ser dada, ou então é fluida, dispersa como as rajadas que a levantam no exato instante em que parecia que a havíamos recolhido.

Quantas estradas deve um homem calcorrear/Antes que lhe chamem um homem? / Por quantos mares deve a pomba branca navegar/ Antes de poder dormir na areia? / Quantas vezes terão que voar as balas dos canhões/ Antes que sejam banidos para sempre?
Quantos anos pode existir uma montanha/ Antes de ser lavada pelo mar? /Quantos anos podem certas pessoas existir/ Antes de lhes ser permitida a liberdade? / Quantas vezes pode um homem virar a cabeça/ Fingindo que não está a ver?
Quantas vezes deve um homem olhar para o alto/ Antes de poder ver o céu? / Quantas orelhas deve um homem possuir/ Antes de ouvir os homens gritar? / Quantas mortes haverá até que ele saiba/ Que já morreram demasiadas pessoas?
A resposta, meu amigo, vai ressoando no vento/ A resposta vai ressoando no vento.

Não é possível empreender a análise de um texto (ao qual retirámos, nas linhas da tradução, uma parte substancial da sua matéria musical e poética) se não intentarmos perceber onde pretende o autor chegar, o que quer atingir, que efeito visa produzir nos que vão lê-lo, ou neste caso concreto, ouvi-lo, preferencialmente. Afigura-se-nos que o facto de o texto ter sido construído sob a forma de ininterrupto questionamento, cuja resposta é, propositadamente, dispersa no vento, nos envia para uma espécie de neblina do sentido, como se o autor, de modo inadvertido, mas nem por isso menos presente, recusasse responder ou atribuir responsabilidades a quem quer que fosse pelas sucessivas e radicais questões de cariz ético-existencial que o texto, de facto, levanta.

Calcorrear estradas, navegar pelos mares, voarem balas de canhões, eis o fulcro do movimento do homem, da pomba e das balas até atingirem o porto de abrigo: ser considerado um homem, poder dormir na areia, banir para sempre. Inversão dialética, movimento e repouso, atividade e descanso. Deste modo o autor exprime a antinomia presente no âmago do mundo, quer seja na referência expressa ao homem, cuja vida inteira nem sempre chega para atingir o seu destino, o seu objetivo, o alvo da sua demanda, quer na metáfora da pomba branca, que tanto pode querer aludir ao símbolo eterno da paz e da mansidão, como à referência bíblica da pomba de Noé, cuja barca necessitou navegar por longos dias até poder atracar em areia firme, e depois, explicitamente, as balas dos canhões presentes em todas as guerras, literal ou metaforicamente, cujo troar ribomba continuadamente sem que dê mostras de querer silenciar. Dialética expressa na contradição entre o movimento e a necessidade do descanso, dialética nunca remida em síntese, pois a resposta continua móvel na flutuação vária do vento.

O tempo, esse enigma, pressentido pelo homem, medido e espartilhado nas engrenagens construídas para imprimir sentido aos dias e aos anos, o tempo é o protagonista da segunda estrofe desta composição poética. Quantos anos, quantas vezes, e eis aqui presente a repetição de gestos ao longo das épocas da vida individual e coletiva, e é o tempo que uma montanha necessita para ser lavada pelo mar, montanha essa que pode bem ser o amontoado heteróclito de tantas ideologias, teorias e sofismas a necessitarem a purificação das águas, também elas metafóricas pois serão as águas do espírito redimido, e são ainda os anos que alguém precisa viver até ser restituído à liberdade para que nasceu, e é o sujeito individual e é a massa coletiva da humanidade na História, e portanto no tempo, e de novo o tempo, presente nas vezes que os homens se ignoram, voltando a cara, fingindo não ver o rosto do outro, a alegria do outro, a dor e a verdade do outro. O tempo, a exercer aqui a sua irremediável ligação ao espaço e ao movimento por estradas, mares e mesmo pelo ar, a que alude a primeira estrofe, o tempo que ciclicamente desnuda perante a consciência lúcida a sua face emaranhada e dispersa, o tempo, presente na consciência dos homens como catalisador e processo catártico da aventura racional, e contudo a antinomia dialética permanece irresoluta e irresolúvel visto que a resposta continua pairando, difusa, no vento.

Por fim, o grito pungente, o aviso, a denúncia: Como levantar a cabeça e caminhar direito, sem que nos verguem uma e outra vez a cerviz de mamíferos bípedes, advindos à consciência? Quantas orelhas são precisas para que alguém possa ouvir os gritos dos homens? Quantas mortes serão ainda perpetradas antes que ele perceba que já morreu muita gente? Com este último verso, o sujeito-alvo das questões, abstrato e como que oculto nas frases precedentes, objetiva-se na última sentença/questão com este pronome pessoal ele, ele, assim mesmo, com minúscula, afastando a ideia tentadora de que o autor acusa Deus pelos cataclismos presentes na história dos homens, remetendo a responsabilidade para todos, para cada um, responsáveis que somos pela antítese da nossa caminhada orientada para nenhures, ou, menos provavelmente, para uma entidade mais acima na hierarquia do povo, um governante, talvez, ou um líder, esse que poderia ser capaz, se acaso existisse, de dar a resposta que, de novo, continua dispersa no vento.
Através desta análise possível da canção emblemática de Bob Dylan, Blowin’ in the Wind, desvelamos o seu possível alcance filosófico, não porque haja nela obscuridade ou indícios de pretensão ideológica, mas exactamente pelo oposto: as palavras anunciam o cerne das questões vitais de toda a humanidade, presentes, muitos séculos antes do ano em que foi escrita, presentes desde o advento da consciência humana e progressivos sinais de perplexidade e de angústia perante o poder maléfico, e potencialmente letal, do prodígio da racionalidade, aparentemente apenas apanágio do homem em todo o mundo animal conhecido. E contudo a resposta que talvez o leitor/ouvinte lograsse obter, essa não é apresentada por uma razão potencialmente dupla: na medida em que ela flutua e se dissolve no preciso instante em que achávamos tê-la agarrado, permanecendo adiada, permanecendo enigmática e logo incapaz de solucionar os problemas, ou porque é dirigida à consciência de cada um que, tal como o autor do texto, pode elaborar idêntico questionamento, buscando a resposta em si e caminhando coerentemente rumo ao solucionar de um problema que também é o seu.

Pelo que nos foi possível conhecer sobre a história deste poema/canção, escrito em New York, em 1962, quando Bob Dylan tinha 21 anos e começava a trilhar o caminho que o levaria onde chegou e rumo ao qual se fez à estrada, vindo do Midwest, e fazendo fé na folha do manuscrito a que tivemos acesso, o texto nasceu absolutamente coeso, com o ritmo, a métrica, a rima e o refrão exactos, com uma hesitação apenas, quanto às palavras iniciais de um dos versos e uma alteração prontamente realizada ainda no manuscrito que inverteu a ordenação entre a segunda e a terceira estrofes. Magia? Sussurro da divindade ao ouvido do criador? Surto prodigioso de inspiração, qual sopro metafísico a dirigir-lhe o pensamento e a mão?

Numa perspectiva fenomenológica, o ato criativo pode explicar-se racionalmente, aquém ou além da magia (a que aliás o próprio Bob Dylan faz alusão, na entrevista dada em 2004 ao programa 60 minutes), como sendo a organização brusca e objetiva de um processo de laboração íntima, decorrido nas esferas profundas do si e subitamente advindo à consciência de modo claro e apto por isso a ser expresso.

Bob Dylan afirma acerca de si próprio no documentário de Martin Scorsese, No Direction Home, Eu era um expedicionário musical, e atentando ao sentido das palavras expedicionário e expedição damo-nos conta da necessidade que lhe foi inerente, principalmente nos primeiros anos da sua chegada a New York, de caminhar pelas ruas, sorver figuras, sons, imagens cheiros, numa ânsia sensitiva de captar para si os múltiplos materiais do rumor vibrátil da cidade, essa capital do mundo por onde corria o sangue vivo de tudo o que valia a pena sondar e haurir. Como chegou à cidade grande já iniciado, cônscio do seu destino e munido dos meios necessários para a ele vir a aceder, não se permitiu perder tempo e a sua mente foi-se transformando num imenso depósito de sugestões e ideias, que, como se de um caldo primordial se tratasse, foram assumindo formas sempre várias até se concretizarem em melodias e palavras.

Por estas razões, o texto Blowin’ in the Wind releva de uma mente desperta e ativa, de um intelecto conhecedor da situação específica dos homens do seu tempo, quer operada através da observação directa, quer pela prática de escutar e de interpretar as canções oriundas da dor e da miséria das classes oprimidas do seu país, as quais foram a sua primeira escola de músico e de cantor e o primeiro alvo da sua tarefa expedicionária. Não importa que ele, a autor do poema e da música, jamais tivesse sido um desses oprimidos famélicos, não é relevante que por ele não tenham passado, de modo direto, as perseguições, os ataques, as discriminações raciais e tudo o mais que naquele tempo era o pano de fundo da vivência do povo americano (e não iremos analisar em detalhe, de momento, a contextura política, social e económica dos anos 60 nos EUA, pois não é esse o nosso propósito.): o que urge destacar nas linhas deste poema/canção tornado hino e manifesto, cantado e logo divulgado por outros intérpretes e atingindo a celebridade antes de o seu autor poder captar o alcance da obra que tinha produzido, é a capacidade extraordinária de dar corpo a inquietações universais, de as expressar sob a forma inquisitorial, tocando o cerne do desassossego perene da humanidade e percebendo de modo íntimo que as questões, pela sua radicalidade, representam a própria estrutura e logo a fundação da consciência humana, pelo que qualquer hipótese de resposta ou de solução será irremediavelmente dispersa no vento.

Se Blowin’ in the Wind fosse apenas um manifesto panfletário, um meio de intervenção numa cruzada político/social específica, um brado isolado de um jovem sedento de atingir a fama e ocupar, enquanto estrela, o palco sendo protagonista de ações de massas, para além dele, decerto o vigor expressivo das suas palavras e o caráter radical do questionamento, de que é exclusivamente composto este poema, não teriam hoje, mais de quatro décadas depois de ter sido composto, o caráter actual que lhe é reconhecido, a universalidade que lhe é apanágio e ter-se-ia evolado no tempo e erradicado do espaço, que foram, por outro lado, o motivo específico da sua criação.


*BLOWIN’ IN THE WIND
How many roads must a man walk down/Before you call him a man?/Yes, ‘n’ how many seas must a white dove sail/Before she sleeps in the sand?/Yes, ‘n’ how many times must the cannon balls fly/Before they’re forever banned?/The answer, my friend, is blowing’ in the wind,/The answer is blowing’ in the wind.
How many years can a mountain exist/Before it’s washed to the sea?/Yes, ‘n’ how many years can some people exist/Before they’re allowed to be free?/Yes, ‘n’ how many times can a man turn his head,/Pretending he just doesn’t see?/The answer, my friend, is blowing’ in the wind,/The answer is blowing’ in the wind.
How many times must a man look up/Before he can see the sky?/Yes, ‘n’ how many ears must one man have/Before he can hear people cry?/Yes, ‘n’ how many deaths will it take till he knows/That too many people have died?/The answer, my friend, is blowing’ in the wind,/The answer is blowing’ in the wind.
BOB DYLAN, 1962

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