quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

A GRIPE É UM TEMPO INÚTIL

ANABELA BORGES COM GRIPE
Foi caso para dizer, como no Auto da Barca do Inferno, “Ó, triste, quem me cegou?”.

Há dias, alguém dizia que a gripe era boa para ver filmes e para pôr as leituras em dia. Eu ouvi e calei.

Mas agora, eu tenho uma pequena teoria sobre quem disse isso, que é como quem diz, das duas… três:

1 – Não sabe o que está dizer.

2 – Pensa que está com gripe, mas não está.

3 – Está com os delírios da febre (da gripe).

4 – Nunca teve gripe.

E ainda acrescento: se a gripe desse para ver filmes e pôr as leituras em dia, ou seja, havendo cabecinha para isso, também daria para ir trabalhar; não obrigaria a ficar na cama.

Foi um bicho que me atacou. Veio de uma estirpe, A ou B, ou uma mistura de ambos, vá-se lá saber! 

E deitou-me por terra (neste caso, foi por cama, felizmente não tenho uma cama feita de terra, só às vezes no Verão) durante dois dias. Mas isto, nem eu sonhava, foi apenas o começo.

Paracetamol e analgésicos haveriam de ser a minha garantida salvação. Bem: dois dias, paracetamol e analgésicos foi o que eu decidi que seria a minha garantida salvação. Foi o prazo e o remédio que dei ao bicho para se ir embora, para ir chatear outro, para se mudar de minha casa para terras longínquas (“Ó Inferno?... Eramá!”). 

Passada tão duvidosa vitória, fui trabalhar. 

“Erros meus, má Fortuna, Amor ardente”. O mundo continuava a girar, é certo, só que, desta vez girava-me na órbita da cabeça, um mundo inteiro, um peso pesado, um mundo de chumbo. E como viver com uma cabeça em órbita?

As dores de cabeça vinham do apertar de um torno por de cima dos sobrolhos, reduzindo o espaço encéfalo a um exíguo compartimento onde cabia o espraiar de sete mares e o ondular de mil marés, tudo num ruído ensurdecedor. Os enjoos eram como barcas à deriva nesses mares, as vagas, difíceis de conter, a subirem-me aos gorgomilos. Estava sempre a ver quando cairia para o lado, de fraqueza ou de natural agnosia, que se calhar era a mesma coisa. E uma das mais espantosas experiências que haveria de vivenciar, com o andamento das horas e o agravamento do estado de saúde: por mais que tentasse manter uma certa compostura, andava de lado, como a carangueja. Como aquela carangueja da fábula de La Fontaine. Pois, de lado. E assim andei à deriva durante sete dias, a trabalhar. 

Até que chegou a noite em que os sete mares e as mil marés precisavam de mais espaço, de saltar borda-fora, queriam uma tempestade inusitada, completa e verdadeira. Um caos no espaço encéfalo, dor e barulho ensurdecedor. 

É uma coisa espantosa, é pois, a tua cabeça a arder como bola de fogo afundada entre os lençóis, e pender bem para o fundo, como se o teu colchão tivesse um buraco, que fosse ardendo. E nem esse fogo, ardente, pesado, apagava os mares e as marés, que continuavam no seu marulhar incessante!

Médico: 

O bicho teria evoluído, dentro de mim, para outra estirpe. O bicho mais forte, com mais garras – podia ver-lhe as garras – divertia-se com o meu corpo, com as minhas diminuídas capacidades físicas e mentais.

Nova medicação: atacar o bicho. E como não há duas sem três, avisou-me o médico que o vírus poderia voltar a evoluir, porque, no trabalho, mantive-me sempre em contacto com o foco de infecção. E ele (o bicho) a rir-se e a evoluir sempre. Maldito! (quem me cegou?). De tudo, não vi “senão breves enganos”. Qual descansar, qual ler, qual ver televisão? Bicho-do-mato-com-ar-de-ter-sido-desenterrado-vivo, isso, sim. 

Baixar as guardas, que é o mesmo que dizer baixa médica. Aterrar verdadeiramente. Parar. Mares e marés na cabeça; fogo ardente e suores frios; enjoos aos gorgomilos. 

A gripe é uma prostração, um tempo morto, um tempo inútil. 

Não li uma linha, não escrevi duas. Não vi filmes. Preparar duas torradas para a minha filha, que estava também com gripe, foi um dos maiores testes de capacidades a que já fui sujeita.

A gripe não serve para nada. 

Respeito. Parece-me que esta pequena amostra do que passei dá para perceber o que passarão as pessoas que se defrontam com doenças graves, duras, difíceis, incapacitantes, e, em muitos casos, incuráveis. Mal de quem sofre de doenças! Mal de quem não tem saúde! Respeito. 

Nesse tempo – foram desta vez tês dias seguidos de ausência, mais o fim-de-semana (dará cinco) – fui afora deste tempo em que vivia. E agora, há o parecer-me querer aportar, novamente, a um lugar seguro, uma espécie de normalidade. 

“afora este mudar-se cada dia”, parece-me que vou neste mundo em outa vez entrando. 

“Ouçam a longa história de meus males, 

E curem sua dor com minha dor; 

Que grandes mágoas podem curar mágoas.”

Luís Vaz de Camões, "Sonetos" 

É o que vos digo. 

Assim é. Ou talvez não. 

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