quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

SALA DE ESPERA

ANABELA BORGES
Salas de espera são, como o próprio nome indica, de espera, e quem espera, é sabido, desespera.
Acontece que há muitas formas de esperar, ou, se quisermos, de preencher a espera.
A própria esperança é uma forma de espera: (esperar + -ança) ‘Disposição do espírito que induz a esperar que uma coisa se há-de realizar ou suceder; Coisa que se espera’ (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). Não é à toa também que se usa dizer ‘estar de esperanças’ na gravidez, essa espera. 

A jovem mulher chegou, apressada com o bebé de poucos dias, na cadeirinha. Sabia que tinha de se despachar o mais que pudesse – toda a sua vida mudara com o surgimento desse novo ser cheio de exigências, rigidezes de horário e alterações a cada instante, que é o bebé. Procurou um balcão prioritário, para ser atendida rapidamente, os olhos sempre postos no filho, tudo posto nele: as mãos, as mantas, as chupetas, os babetes, os panos.

O homem com as canadianas estava em sofrimento. Não tinha posição para estar ali. Tudo lhe doía. Dizia palavrões para dentro, dizia “pqp, fds para esta merda”. Esticava a perna que não estava doente e voltava a encolhê-la, levantava-se, sentava-se, contorcia o abdómen, balançava-se na cadeira para a frente e para trás. Ainda para mais calhara-lhe um dos lugares nas cadeiras ao meio da sala de espera. Não tinha onde pousar as canadianas. A chamada para a ortopedia estava demorada, “merda, pqp, fds”.

A mulher no banco ao fundo estava impaciente com as horas. Chegou-se o final da manhã e ainda à espera, ainda ninguém tinha dito o seu nome, para ir fazer a mamografia. Tinha de ir embora, preparar o almoço para o marido e os filhos. Pela cabeça passavam-lhe casos que ouvia todos os dias serem contados sobre mulheres que tinham cancro da mama – das que ouvia nas notícias e das que ela conhecia, das que andavam em sofrimento e das que sucumbiram já. A mulher pensou, “Que se lixe o tempo de espera. O que quero é que esteja tudo bem com as minhas mamas. Se tudo estiver bem com as minhas mamas, já dou o dia como ganho”. 

No extremo oposto ao da mulher, um homem dos seus quarenta anos. Tem consulta, inadiável. Impacienta-se com a espera. As horas contam. Apesar da doença grave já diagnosticada, escrita em linguagem técnico-científica em todos os envelopes compridos de cor bege que senta ao colo, tem de ir trabalhar. Assim que sair dali, vai directo para o trabalho. Está tolhido da doença e das perseguições do patrão. Desconta-lhe todas as horas, todas as idas ao médico, e o mais certo é despedi-lo, se não anda da perna. Está fodido. Não pode dar-se ao luxo de perder o trabalho. A doença ruim escrita na testa.   

A senhora reformada, bem aperaltada, vai para o médico como quem vai passear-se ao parque, com um sorriso de satisfação de canto a canto e flashes de exageros na maquilhagem, sombras e blush. Não pára quieta nas cadeiras, a dança das cadeiras, para falar com esta e aquele – com quem estiver com disposição para falar. A senhora reformada vai feliz para o médico. E gosta das esperas. Gosta de salas de espera. Inventa doenças, moléstias e requebros, males-estares súbitos e calores inexplicáveis no peito. Veste o casaco de peles e vai, de cadeira em cadeira, conversa as vidas passadas e as vidas que lhe esvaziam a vida. A senhora reformada não se importa de esperar. E no fim da consulta volta a fazer a dança das cadeiras e só vai para casa quando se faz tarde para fazer as coisas dela.

Na sala de espera, a adolescente está embeiçada. Não gosta de estar ali. Não quer. Ao lado da mãe, mostra má-vontade, como se a mãe ou os outros pacientes ou o mundo inteiro, alguém, tivesse culpa de ela estar doente. A moça adolescente é um poço de silêncios, uma torre de arrogância, mal-agradecida que ela é, perante a condescendência da mãe. Ela mostra-se assim e talvez nem tenha a consciência de ser assim, porque, na lateral, noutra cadeira laranja, está outra adolescente, menina com ar amável, a ler um livro enquanto espera. 

A sala de espera é um corre-corre. Mas também é um lugar parado. Há um burburinho a tocar o tecto baixo de pladur. Pessoas em espera, em diversos estados de espírito, algumas conversando, outras impacientes e outras em circunspecção. Há as que circulam, que vão ao gabinete médico ou ao balcão
A sala de espera tem muitos cheiros: cheira a éter, às roupas das pessoas, a muitas bocas e cabelos, e cheira a velho, por vezes. 

Quando eu era pequena, divertia-me muito nas salas de espera, porque imaginação foi coisa que nunca me faltou, nem a mim nem aos meus irmãos, no dentista, no fotógrafo – bastava olharmos uns para os outros, que era risota, por certo, pois estaríamos já a inventar histórias. 
Para uma criança, a sala de espera pode ser o que ela quiser. Nós crianças, e aquele corredor imenso de tábuas de soalho escurecido era a sala de espera para o fotógrafo. Os adultos num silêncio austero ou falando em murmúrios e a fazerem-nos “shhh”. Muitas vezes, eram eles o motivo dos nossos risos. 

Em todo o caso, são esperas, enfim. O que seria da esperança se não houvesse lugar para a espera?

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