sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

A CARTA DE UM SÍRIO AO PAI-NATAL

Querido Pai Natal,

"Ali"
Escrevo-te não para te pedir algo, mas para te agradecer. Agradecer o extraordinário dom de estar vivo e ter junto de mim a minha família.
Há meses, eu e a minha mulher tivemos de tomar a decisão mais difícil das nossas vidas: reunir a totalidade das nossas economias e pagar a um traficante do medo humano uma viagem de barco, para atravessar o mar mediterrâneo, de maneira que pudéssemos ficar a salvo autoproclamado Estado Islâmico. Foi uma decisão difícil e arriscada, pois não tínhamos muito dinheiro e sabíamos que viajaríamos em condições muito inseguras. Nunca senti tanta angústia como naquelas longas horas em que baloiçámos ao sabor das ondas do destino, num bote a abarrotar de gente perdida e desesperada. Famílias inteiras, como nós, que arriscavam a sua vida e dos seus filhos, numa desesperante tentativa de fugir da morte que todos os dias os senhores da guerra nos prometiam certa.

Miraculosamente chegámos à europa do sul, onde fomos acolhidos com algum afeto, mas logo nos disseram que não podíamos ficar. Não tinham lugar para nós. Por isso, tive de explicar às minhas filhas que teríamos de caminhar por estradas desconhecidas, subir montanhas, comendo apenas uma vez por dia.
Passámos por diversas cidades e alguns países. A minha filha mais velha (tem nove anos) não compreendia o ódio, o desprezo, a raiva, com que nos trataram na Hungria. Não nos queriam e fizeram questão de no-lo demonstrar, tratando-nos como animais perigosos. Na Eslovénia também já nos tinham dito que não tinham nada para nos oferecer e trataram de nos apressar o passo.
À medida que os dias passavam, a descrença e a desilusão apossavam-se de mim. Com poderia ser esta a europa da liberdade, da defesa dos direitos humanos, da fraternidade e da solidariedade que via e lia na internet? Falo mal inglês, mas entendia o suficiente para perceber quanto desprezíveis éramos para os europeus. Que desilusão, Pai Natal!

Eu que andei anos a contar às minhas filhas que aqui, na tua terra, tudo era diferente: não havia pessoas más; não havia fome, nem desprezo nem ódio. Todavia, só quando chegámos a Viena de Áustria é que podemos sentir alguma fraternidade no olhar das pessoas.
A cidade era linda, com os seus monumentos, as suas igrejas, os seus teatros. Parecia um paraíso, onde tudo funcionava perfeitamente. Nós éramos a novidade!

Em cada dia que passava, chegavam mais imigrantes sírios. Famílias inteiras como nós! Apesar de toda a boa vontade austríaca, percebi imediatamente que apenas nos poderiam oferecer auxílio de emergência. Não seria fácil sair do nosso acampamento de refugiados e encontrar emprego e normalizar a nossa vida. A língua também era um problema e as nossas filhas estavam cada vez mais silenciosas, tristes, sem esperança.
Até que nos primeiros dias do outono, uma caravana de anjos, certamente requisitados por ti, surgiu com os seus trenós modernos multicolores e puxados a potentes renas. Abeiraram-se de nós e, pela primeira vez, em muitas semanas, as minhas filhas voltaram a sorrir. Falavam delicadamente, sorriam com doçura e propuseram-nos um pequeno paraíso: viajar para Portugal, onde nos esperava uma casa, comida, roupa, um emprego para mim, e escola para as nossas filhas mais velhas.

Nem sabia onde ficava Portugal, mas aquela generosidade, deixou-me de lágrimas nos olhos e só podia aceitar. Disse-lhes que sim várias vezes, e de todas as maneiras que o meu corpo conseguia expressar o nosso agradecimento.

Quando chegámos a Lisboa e depois à pequena cidade nos seus arredores onde vive a família que nos acolheu, percebi que se tratava de um país com dificuldades económicas. No entanto, eles fizeram questão de nos integrar rapidamente e providenciar para que nada nos faltasse.
Entretanto passaram dois meses e ontem chegaram os primeiros refugiados oficiais a esta terra que passei a amar como minha. Estou certo que ouvirei novamente a nossa querida língua, embora o português me soe maravilhosamente.

Ao contrário do que cheguei a temer, este ano passaremos um Natal feliz, em paz e em família. Ganhámos novos amigos e revimos outros que julgávamos perdidos. Daqui a uma semana é o Natal. Não te peço nada! Agradeço-te os anjos que me enviaste a Viena, onde agora a neve cai e as igrejas se enchem de belas canções de Natal.

Em Viena, Budapeste ou Berlim, não te canses de enviar os teus presentes em forma de humanidade e generosidade, aos meus conterrâneos. 

Ali, um sírio abençoado

Sem comentários:

Enviar um comentário