terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

A HONESTIDADE DE QUEM LÊ

REGINA SARDOEIRA
Existem sem dúvida muitos critérios para classificar as obras artísticas, uns, nítidos e precisos, outros, menos acessíveis à compreensão do vulgo. Há livros galardoados (falemos de livros) e autores erguidos às alturas da genialidade, e contudo escassamente lidos e compreendidos, e outros, que jamais ficarão na História da Literatura, e no entanto são chamados de best-sellers (porque muito vendem) e à custa dos quais riquezas e reputações se vão construindo.

Não irei falar desses critérios específicos, os dos críticos e analistas literários, nem sempre acessíveis, porque naturalmente técnicos, e os do leitor comum, quantas vezes enganado pelas falsas prosápias do escrevente. Mas tecerei alguns comentários sobre aquela que considero uma das características mais relevantes da obra literária, marca, por excelência, da qualidade extrema do escritor e que é a honestidade. Honestidade, simultaneamente intelectual e ética, honestidade, enquanto sinal da verdade intrínseca do texto, da assumpção dos limites e mesmo da narração marcada por elipses ou lacunas. Explicar-me-ei. A maior parte das vezes o escritor assume uma postura de omnisciência: ele é dono das personagens que cria, entra-lhes na pele e na alma e logo sabe tudo sobre os seus pensamentos, sobre o seu passado e futuro, sobre as suas razões, convicções e sentido da existência. É evidente que, se acontece tal omnisciência, é na exacta medida em que o escritor se multiplica nas suas personagens, elas são os seus alter-egos no todo ou na parte e, por isso, quando as retrata, é de si mesmo que, no fundo, o autor fala, é a si próprio, afinal, que ele traça um destino ou faz apelo a um passado. Não direi que esse tipo de narrativa não prime pela honestidade, desde que o autor admita que se retratou a si, disfarçado ou disperso pelas múltiplas pessoas que envolveu na trama: porque cada um de nós só pode falar de si e a escrita é um solilóquio, um enunciar-se ao mundo, usando este ou aquele disfarce, este ou aquele pretexto criativo, esta ou aquela metáfora inventiva. Porém, quando agora aludo à honestidade intelectual do escritor, tenho em mente uma obra que li duas vezes nas últimas duas semanas, uma obra a que apenas cheguei depois de a ter visto transposta para o cinema, e percebo que nunca antes tinha acedido a uma experiência de leitura tão autêntica, tão profundamente verdadeira, tão parecida com a vida, nas suas antíteses, nos seus conflitos, nas suas omissões, e de onde está absolutamente arredado o carácter de omnisciência do escritor que nos fala na primeira pessoa, mas que nem de si parece conhecer a chave perfeita que conduziria o leitor ao seu retrato fiel, enquanto personagem da história.

A obra tem o título simples de O Leitor (Der Vorleser) e foi escrita por Bernard Schlink, escritor alemão, não particularmente conhecido entre nós, mas subitamente presente nas livrarias depois do (relativo) sucesso do filme homónimo. A história é aparentemente vulgar: na Alemanha dos finais dos anos 50, um jovem de 15 anos conhece uma mulher, vinte anos mais velha, envolvem-se numa relação amorosa, de absoluta descoberta para o jovem que se une a ela com enorme intensidade afectiva. A mulher gosta que o jovem (estudante do liceu) leia para ela; e, durante todo o tempo que a relação dura, o rapaz lê-lhe os clássicos desde A Odisseia até Guerra e Paz e criam uma rotina diária em que o amor e a leitura se enleiam. Um dia, porém, inexplicavelmente para o jovem, a mulher desaparece, sai da cidade onde ambos viviam sem deixar carta, morada ou referência e o rapaz sente a frustração e o desespero naturais perante um corte tão abrupto. Os anos passam e um dia, quando ele é estudante de Direito, o professor leva os alunos a assistir ao julgamento de seis guardas das SS, condenadas por crimes cometidos nos campos de concentração e mais tarde aquando da saída dos campos, no final da guerra. E ele descobre, no meio das acusadas, a sua amante perdida! Percebe, gradualmente, no cenário do julgamento, que essa mulher, por quem sentiu o primeiro amor e a quem primeiro se entregou, é analfabeta, uma analfabeta incapaz de se assumir como tal e que, por isso, lhe pedia que lesse, disfarçando os verdadeiros motivos; entendeu uma série de sinais, que na altura não levou em conta, e soube que o orgulho e a iliteracia da sua amante a forçavam a mudar de emprego, sempre que se sentia ameaçada com uma promoção, por exemplo, e a necessidade de exibir habilitações que não tinha. Entendeu que, do mesmo modo que fugiu da cidade onde se conheceram porque a Companhia de Eléctricos onde trabalhava lhe propôs uma promoção, com a consequente exigência de saber ler e escrever, também deixara antes o emprego na Siemens e alistara-se como guarda nas SS, apenas porque abrira a oferta e não lhe exigiram qualquer habilitação. Percebeu, com horror mesclado de pena, que no tempo em que se amaram, ela tinha um passado de funcionária de Auschwitz, que seleccionava prisioneiras para os fornos crematórios, com a precisão e o profissionalismo de quem cumpre apenas o dever inerente à profissão e que não hesitou em deixar morrer 300 mulheres presas numa igreja em chamas, apenas porque era guarda e tinha como dever…guardá-las! Viu a mulher a confessar ter escrito o relatório que a incriminava, apenas para não se sujeitar ao teste caligráfico, proposto para decidir da sua autoria, pois aceitar semelhante teste era confessar-se analfabeta, e viu-a ser condenada a prisão perpétua, por orgulho, por vergonha, por embotamento. A história não termina assim, porque o jovem, tornado homem, nunca mais se libertou da impressão profunda que aquela mulher lhe instilou no ser, no tempo em que se relacionaram. Ela foi sempre o modelo pelo qual aferiu as suas relações futuras; e nenhuma delas durou porque nenhuma das mulheres seguintes tinha as peculiaridades da primeira. Não conseguiu visitá-la na prisão; mas, alguns anos depois, começou a gravar cassetes com leituras de livros e a enviar-lhos, e percebeu, ao fim de anos de envios, que ela aprendera a ler sozinha, escutando as cassetes e comparando as palavras ouvidas com os caracteres impressos dos livros que ia requisitando, pois ela começou a escrever-lhe pequenas cartas, às quais no entanto nunca foi capaz de responder. Por fim, quando após vinte anos de prisão lhe concederam o indulto, foi a ele que contactaram, pois era o único elo conhecido que a prendia ao mundo de fora. Contrafeito, ele visitou-a; percebeu que a mulher envelhecera, viu-a descuidada, decadente e não conseguiu demonstrar-lhe o afecto que ela decerto esperava. No dia em que ele deveria ir buscá-la à prisão, e depois de lhe ter arranjado casa e trabalho, a mulher suicidou-se na própria cela.

Conto a história porque sei que a importância da obra não reside nos pormenores ou no enredo, mas sim no modo como o autor se questiona, questionando-nos, no modo como ele não julga a sua heroína e nos impossibilita essa hipótese, no modo como ele admite ter traído ou sonegado aquela que efectivamente amou a vida inteira, mas a que não conseguiu dedicar-se, que não foi capaz de salvar da pena de prisão perpétua, mesmo sabendo que poderia intervir, pois apenas ele percebeu que a aceitação da responsabilidade principal no julgamento vinha do facto insólito de ela não querer, mesmo no extremo, admitir que era iletrada… Conto a história porque sei que os verdadeiros leitores, aqueles que não se limitam ao enredo mas querem sempre ir mais fundo, transcenderem-se ou transcenderem a própria trama, lerão o livro uma e muitas vezes, chegando à conclusão que é necessário estudá-lo, reflectir nele, sabê-lo de cor (quem sabe?). Conto a história porque depois de ver o filme (duas vezes) também já li o livro outras tantas, primeiro de um só fôlego, depois em pequenas doses, e percebo que o livro não trata disto ou daquilo em exclusividade, mas vai directo aos sentimentos humanos, aos valores, às contradições que são a componente intrínseca das personagens, do seu autor e também nossas, e que lê-lo é um importante exercício de auto-aprofundamento. E vou mesmo ao ponto de transcrever alguns dos parágrafos do seu capítulo final:

«(…) A intenção de escrever a história da Hanna e a minha surgiu pouco depois da sua morte. Desde então, esta história escreveu-se muitas vezes na minha cabeça, de cada vez sempre um pouco diferente, de cada vez sempre com novas imagens e fragmentos de acções e de pensamentos. Assim, para além da versão que escrevi, existem muitas outras. A garantia de que esta é a verdadeira é o facto de que a escrevi, enquanto as outras ficaram por escrever. Esta versão podia ser escrita; as outras não.
De início queria escrever a nossa história para me libertar dela. Mas a memória negou-se a colaborar. Depois notei que a história me escapava, e quis recuperá-la pela escrita, mas também isso não fez com que as recordações surgissem. Há já alguns anos que deixei esta história em paz. Fiz as pazes com ela. E ela voltou por si própria, detalhe a detalhe, e tão redonda, fechada e orientada, que já não me entristece. Durante muito tempo pensei que era uma história triste. Não que agora pense que seja alegre. Mas penso que é verdadeira; por isso, a questão de saber se é triste ou alegre não tem nenhuma importância.
De qualquer modo, é nisso que penso quando calha vir-me à cabeça. Contudo, quando estou magoado reaparecem as mágoas antigas; quando me sinto culpado, volta a culpabilidade de então; e no desejo e na nostalgia de hoje, esconde-se o desejo e a nostalgia de ontem. As camadas da nossa vida repousam tão perto umas das outras que no presente adivinhamos sempre o passado, que não está posto de parte e acabado, mas presente e vivido. Compreendo isto. Mas por vezes é quase suportável. Talvez tenha escrito a história para me livrar dela, mesmo que não o consiga. (…)»

Bernhard Schlink, O Leitor, Edições Asa, 2009, p. 143

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