quinta-feira, 7 de julho de 2016

MESSI, E AGORA?

MESSI CONDENADO A 21 MESES DE PRISÃO
CRÓNICA DE GONÇALO NOVAIS
O anúncio do abandono da selecção argentina por parte de Messi após a segunda final consecutiva perdida para o Chile na Copa América gerou grande comoção em todo o país e um pouco por toda a comunicação social desportiva a nível mundial, trazendo consigo potenciais abandonos de mais colegas de selecção, tentativas por parte do presidente argentino Mauricio Macri de demover o jogador da sua decisão, ou ainda a grande insatisfação de um jornalista chileno na sala de imprensa, que bastante agastado pelo facto de se valorizar muito mais o anúncio do abandono de Messi do que a conquista do título por parte do Chile, abandonou o local em protesto.

Voltando ao anúncio do abandono, surge então a inevitável questão de toda esta crónica.Quais as razões que levaram a este anúncio? Porque quererá Messi abandonar a selecção?

A resposta a esta questão envolve todo o conjunto de conhecimentos que tenho vindo a partilhar convosco nos meus artigos de opinião. É que conceitos como processo motivacional ouorientação competitiva estão longe de ser abstractos, e materializam-se em problemas que nos surgem no decurso de cada ciclo desportivo.

E recorrendo fundamentalmente a estes dois conceitos, o que se pode dizer é que, antes de mais, a vontade de Messi abandonar a selecção argentina NÃO É um acto de covardia, MAS SIM o corolário de todo um processo motivacional fortemente orientado para o resultado e a conquista de títulos.

No terceiro artigo que publiquei aqui, falei aqui das orientações competitivas, que são aorientação para o ego e a orientação para a tarefa. Na primeira orientação, todo o processo motivacional está canalizado para a obtenção de performances de qualidade superior em relação aos adversários, e por conseguinte de bons resultados desportivos, ao passo que na orientação para a tarefa o processo motivacional está canalizado para o aperfeiçoamento da qualidade de execução da tarefa ou conjunto de tarefas. Ora, quando falamos em desporto de alto rendimento, falamos de um contexto competitivo no qual existe uma tremenda exigência relativamente à necessidade de obtenção dos melhores resultados possíveis, pois isso é que é fundamental, isso é que garantirá que certos agentes desportivos fiquem para a história como campeões ou como os melhores, coisa que não sucederá se tais conquistas não forem alcançadas. E na Copa América Centenário 2016, uma das duas mais importantes provas futebolísticas continentais ao nível de selecções a par do Euro, tais exigências continuam a verificar-se, e quem analisou na antevisão desta competição a composição da selecção da Argentina verificou que a qualidade dos jogadores convocados não deixava margem para dúvidas relativamente à mensagem transmitida pelo seleccionador Tata Martino e toda a estrutura da Associação de Futebol Argentina a jogadores, adversários, adeptos e acompanhantes assíduos da competição: «É para ganhar!».

Tendo em conta este enquadramento, e tendo em conta as finais perdidas antes em 2007 e 2015 em anteriores edições da Copa América, e em 2014 no Campeonato do Mundo, foi um Messi no limite aquele que teve de suportar novamente a desilusão de perder uma nova final em 2016, tendo novamente o Chile como “carrasco”. São muitas finais perdidas no meio de um contexto de trabalho em que existe uma vincada orientação dos processos motivacionais para a obtenção de bons resultados e troféus, mais do que para a valorização do esforço, da competência e da evolução qualitativa dos princípios e sub-princípios de jogo registados ao longo da competição. A Copa América Centenário não fugiu, como é óbvio, a este panorama, e daqui a uns tempos a imensa capacidade desequilibradora e as boas exibições de um Messi que ia escondendo alguns défices qualitativos nos processos de jogo colectivos na selecção ficarão em segundo plano face à perda de mais um título na final e à grande penalidade falhada pelo avançado do Barcelona.

Coloca-se agora a questão do futuro, de saber qual será o procedimento mais correcto a adoptar por parte da estrutura federativa tendo em conta uma decisão mais do que legítima de um dos seus melhores jogadores.

Em primeiro lugar, desconfio que o jogador chegou a uma situação na qual, pelo menos de momento, sente não dispor de condições e recursos necessários à obtenção dos títulos almejados não apenas por ele como por toda a estrutura federativa. Está portanto a precisar acima de tudo não de uma pressão nacional generalizada no sentido de pressionar o jogador a voltar (como se não houvesse alternativas de qualidade), mas sim de um acompanhamento psicológico destinado a ajudar o jogador a recuperar deste momento complicado do seu percurso desportivo, tentando promover uma reorganização do pensamento do atleta focada, no imediato, no progressivo restabelecimento dos seus índices de autoconfiança e satisfação com a sua vida profissional, na valorização daquilo que de positivo foi feito pelo jogador na prova (e foi muito!), e na concessão de espaço e tempo ao jogador no sentido de ele, de forma mais tranquila e discreta, poder pensar de forma mais pragmática e calma na decisão que tomou, no sentido de, longe dos holofotes mediáticos quanto possível e dos telefonemas presidenciais, poder tomar uma decisão mais madura e adequada quanto à sua continuidade (ou não) na selecção do seu país.

Em segundo lugar, acho estranho que no futebol profissional, e ainda por cima num país com tantas alternativas de qualidade para todos os sectores e posições, assistamos a um terramoto tão grande pelo facto de um só jogador, independentemente da sua qualidade, ter decidido abandonar a selecção. Acaso não terá a Argentina jogadores como Aguero, Higuaín, Dybala, Tevez, Vietto ou Correa, apenas para citar os mais competitivos de momento? Não terá porventura a Argentina uma base de recrutamento interessante no seu próprio campeonato, que sempre é um dos mais competitivos da América Latina? É que por muito que se reconheça em Messi um grande ascendente sobre os seus colegas de selecção e alguma capacidade de liderança dentro de campo, quando trabalhamos em contexto profissional temos de estar bem alerta relativamente a uma situação na qual um projecto desportivo desaba por causa de um abandono, o que não constitui seguramente um atestado de solidez do edifício desportivo e do plano estratégico de desenvolvimento desportivo do futebol argentino, caso se confirme e agudize uma desnecessária crise por força de uma decisão mais do que legítima de um dos seus jogadores.

Em terceiro lugar, não nos esqueçamos que o futebol é uma modalidade desportiva colectiva, e em função disso, deve privilegiar o colectivo em detrimento do individual. Existe toda uma visão estratégica, toda uma estrutura com determinados recursos, e toda uma filosofia e metodologia de trabalho e princípios e sub-princípios de um “jogar” que, beneficiando logicamente da presença de grandes jogadores que potenciem a qualidade de todo este trabalho, não pode pôr em causa todo o trabalho de uma das selecções mais fortes do Mundo por causa da ausência de um só jogador, que por muito que abrilhante o jogo argentino, não faz milagres sozinho. E a Argentina tem esses jogadores, conforme já referi, e alguns deles são jovens de grande qualidade, que militam em campeonatos bastante competitivos e têm uma longa margem de progressão pela frente. Se todo um ciclo ou processo de trabalho fica em risco com o abandono de um jogador, ou existe todo um trabalho de reforço da autoconfiança de um grupo que tem urgentemente de ser feito (porque a qualidade técnica da Argentina sem Messi continua a ser do melhor que existe no mundo futebolístico), ou então a gestão do futebol argentino nada tem de profissional, remetendo-se o profissionalismo ao papel, à teoria.

Em último lugar, e pegando na valorização do futebol como modalidade desportiva colectiva, talvez a maior preocupação da Argentina devesse ser a qualidade dos seus processos e princípios de jogo. Chegou a mais uma final de uma grande competição internacional, a terceira em três anos, mas tal não invalida a falta de envolvimento colectivo da equipa nos seus processos de jogo. Com Messi ou sem ele, a equipa tem que se concentrar na sua evolução nos diferentes processos de jogo, já que o processo ofensivo se encontra assente na qualidade de passe e criatividade de médios como Banega ou Augusto Fernández, ou na técnica de drible e de transporte de bola em velocidade de avançados como Messi, Higuaín, Di Maria, Gaitán, Lavezzi, Lamela ou Aguero (não jogam todos em simultâneo obviamente), sem participação recorrente de outros elementos, como por exemplo os defesas centrais e laterais, e o processo defensivo encontra-se completamente a cargo do quarteto defensivo e de normalmente um ou dois médios-defensivos, sem participação dos jogadores com características mais ofensivas. É nestes princípios e fundamentos de jogo que para já a Argentina se deverá concentrar, deixando para já, num plano mais imediato, o jogador Lionel Messi a recuperar animicamente de uma situação que o abalou significativamente na sua autoconfiança e na sua percepção de competência, coisas das quais se falaram em artigos anteriores. E se o avançado do Barcelona decidir nunca mais voltar, será tempo de olhar para o futuro e de aproveitar os jogadores de grande qualidade que, enquadrados com processos de jogo de maior qualidade, garantirão a competitividade da selecção argentina nos próximos anos.

Porque por muito bom que seja um determinado jogador, existe todo um conjunto de outros jogadores, numa nação como a Argentina, capazes de brilhar numa das selecções mais fortes do Mundo, mantendo a competitividade que a caracteriza. Porque o individual não se deve sobrepor ao colectivo, apesar da importância dos diversos contributos de cada um para uma equipa.

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