quinta-feira, 22 de setembro de 2016

ENCLAVE, DE GORAN RADOVANOVIC – ENCLAVES, IDENTIDADES E DECISÕES

ANABELA BRANCO DE OLIVEIRA
Tal como combinei na crónica passada, vou partilhar convosco algumas reflexões sobre mais um filme do realizador sérvio Goran Radovanovic.

Enclave, de Goran Radovanovic (2015), é um filme de olhares, de gestos e de silêncios. Silêncios de resignação, de compreensão, de carinho e de serenidade. Silêncios que dominam o jogo do dominó entre Nenad e Milutin na surpresa das peças substituídas pelos quadrados de açúcar, pequenos retângulos, como a janela do tanque, como o tijolo da casa de Baskim e como as pedras do ódio. Silêncios de resignação e de gritos abafados na consciencialização da morte de Milutin. Silêncios de uma aldeia cristã, de telhados destruídos e de carros abandonados, e de pessoas que, atacadas durante a viagem de autocarro, caminham resignadas durante tanto tempo, numa aridez tão trágica. Silêncios nos rostos do pai de Baskim e do padre Draza: silêncios de uma resignação ou de um desejo de mudança?

É um filme de resistência porque se resiste, sempre. Nenad vai sozinho para a escola e estuda sozinho, com uma professora e, numa composição tão expressiva, mostra-nos toda a realidade da vida num enclave do Kosovo. No tanque da KFOR, os jogos de mãos e as ladainhas entre ele e Draza são uma forma de resistência aos apedrejamentos e a ausência do medo intensifica a serenidade do olhar de Nenad. Os momentos de tabuada e cálculo mental com Draza são a força de uma identidade que resiste apesar de tudo: a indiferença, o dever e a aprendizagem no enclave da derrota, das pedras e do isolamento.

Resiste-se através de uma vela porque uma vela pode ser uma forma de resistência perante a realidade do enclave. Confere a luz necessária face à escuridão do espaço exíguo do tanque da KFOR e representa a luta contra a escuridão imposta pelos albaneses que cortam a eletricidade da aldeia sérvia.

A repetição de tabuadas, números e tarefas é um também um percurso de contraste e de resistência. Nenad repete as lições com o padre e repete os recados com o pai – uma forma de aprender mas também uma forma de comunicar, uma forma de trocar mensagens de serenidade e carinho e de consolidar identidades. É também uma forma de ser indiferente ao enclave, uma forma diminuta de ser indiferente à injustiça. É aquela mão que resiste debaixo do sino. Tal como a pequena vaidade de Nenad, em que o álcool e o açúcar são fundamentais para fazer um penteado.

Em Enclave, os contrastes dissipam-se. Dissipam-se os contrastes entre a destruição e a serenidade dos olhares. Os travellings e os planos panorâmicos definem percursos de intensas destruições: a da igreja e da torre do sino na criação do desalento, a da paisagem na criação das fronteiras e dos tanques, a do cemitério e a da paz de uma viagem no apedrejamento do autocarro. A serenidade dos olhares contrasta com as injustiças – com as armas permitidas aos albaneses e proibidas a Vojislav.

Enclave é um filme de símbolos que se desfazem. E o sino da igreja é o símbolo do enclave. É a reconstrução de um templo mas também é um foco de ódio e destruição. É um espaço de brincadeiras infantis e, ao mesmo tempo, o espaço do sufoco e da prisão de Nenad. É o espaço que espelhou o ódio de um passado recente no sofrimento de Baskim e que, ao mesmo tempo, definiu o ponto de viragem na destruição desse mesmo ódio. Pela força da raiva e pela força das circunstâncias, Nenad ficou preso no sino mas não ficou completamente fechado. Na queda, manteve-se uma frincha de luz e de ar, uma saída exígua que permitiu, mais uma vez, que Nenad pudesse olhar para o exterior, uma frincha exígua para que o movimento dos dedos da sua mão pudesse sossegar a transformação de Baskim. O sino é o enclave que pode um dia terminar.

As distrações de uma brincadeira inocente e sem diferenças étnicas conduzem ao desaparecimento de umas roupas e à imposição de um castigo. Um castigo ouvido nos sons de um cinto que marca a pele de uma criança, de cabeça baixa e de braços calmos, vislumbrado no retângulo da janela e sentido no olhar meigo e sereno de Nenad e no silêncio intenso de Milutin. As novas calças de ganga, vestidas por Nenad, pertencem ao pai: são excessivamente largas, sem apoio, atrofiando os movimentos mais urgentes. São as calças do castigo e da miséria mas também são as calças do testemunho e da aprendizagem. Elas são a ponte de uma relação intensa e inabalável entre pai e filho. Através delas, o cinto, outrora instrumento de castigo, serve agora para segurar o crescimento de Nenad, a dignidade de Vojislav e intensificar uma relação de luta e carinho que culminará, em Belgrado, na perceção de outros ódios e de outros enclaves.

Enclave é um filme de ódios que se intensificam ao mesmo tempo que se deixam destruir. Ódios que habitam o olhar de Baskim, que o empurram para a inveja, para a violência e para a mentira, que o pressionam e não o deixam ser criança. Mas, o rosto de Baskim vai sendo sucessivamente transformado. E aprende a olhar para os rostos dos outros meninos albaneses e para uma tablete de chocolate, também ela intensa e destruidora: intensa porque provoca a lenta mas inexorável transformação de um ódio que se torna amizade. Ela é objeto da mudança e da certeza de uma paz. O início do fim de um enclave é também aquela tablete de chocolate colocada debaixo daquela réstia de espaço possível na prisão do sino.

Este filme é um enclave de identidades e de olhares condicionados. Nenad, Draza e os miúdos albaneses veem o mundo através de um retângulo que é, ao mesmo tempo, a representação fechada do enclave e a possibilidade de uma abertura e de uma resistência ao isolamento. Para Nenad e Draza, o mundo é visto através da pequena janela do tanque da KFOR. Os meninos albaneses espreitam o mundo dos rituais familiares de Baskim através de um buraco na parede tapado por um tijolo. São retângulos que abrem muros e negam isolamentos. Como aquela janela, na casa de Nenad, que recebe sempre o olhar tranquilo daquela vaca, testemunha de todos os silêncios.

Enclave projeta a violência, a injustiça, a resignação, a desistência e a vingança. Mas é sobretudo um filme sobre a resistência, a construção de uma identidade, a inevitabilidade da mudança e a ausência do medo. Nenad é um menino sem medo. A aldeia do medo vai ficando deserta: Milica saiu, Nenad e Vojislav também saem depois da morte de Milutin. O enclave vai desaparecer pela fuga ou pela mudança? Baskim e Nenad serão os motores dessa mudança? Porque afinal há outros enclaves, também em Belgrado…

Enclave é a metáfora de todos os enclaves identitários atuais que querem destruir culturas, expressões e comunidades. Mas também é um grito de esperança refletido nos olhares de Nenad e Baskim.

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