terça-feira, 15 de novembro de 2016

DA PAZ À GUERRA

LUÍS CUNHA
Em 1795, Immanuel Kant, homem maduro, que dobrara já os 70 anos, publica um livrinho, sob a forma de Tratado, a que chamou «A Paz Perpétua». A inspiração para o título encontrou-a não na paz do cemitério de Königsberg, de onde quase não saía, mas no nome de uma pousada holandesa por onde passara em viagem. Já quanto à forma, a inspiração veio-lhe dos tratados comerciais em franco crescimento por aqueles anos. Estas foram, em todo o caso, inspirações circunstanciais. A motivação mais importante foi a esperança nas promessas que as Luzes deixaram e a Revolução Francesa parecia querer concretizar.

Com este Tratado, Kant procura definir as condições que tornariam possível uma paz entre as nações que não fosse transitória, antes se perpetuasse para todo o sempre. No seu entender, ela deveria assentar em dois pilares fundamentais: a construção de uma cidadania cívica e o desenvolvimento de instrumentos jurídicos capazes de regular as relações entre as nações. Em relação a este segundo aspeto, é justo lembrar que Kant viveu e escreveu antes do surgimento da ONU e mesmo da Sociedade das Nações, o que significa dizer que acertou ao imaginar a emergência de mecanismos de juridicização que vão para além da mera delimitação da soberania estatal através do direito internacional. Talvez tenha pecado apenas por excesso de otimismo: achou que seria possível que esses mecanismos estabelecessem um regime regulatório suficiente para assegurar a paz, o que, evidentemente, está longe de suceder.

A expressão «cidadania cívica» parecerá um pouco estranha pela redundância que sugere, mas com ela Kant não se reporta à vida na «civitas» nem mesmo a nenhuma forma de identidade cultural ou étnica. Associava-a, isso sim, à Constituição, entendida enquanto ato de vontade geral que faz da multidão povo. Os princípios constitucionais, que Kant associa à República – a liberdade individual dos membros de uma sociedade, a dependência de todos em relação a uma legislação comum e a igualdade enquanto cidadãos –, estão hoje formalmente assegurados, pelo que também neste ponto Kant antecipou, com acerto, o tempo que se seguiria ao seu.

Parece indiscutível, no entanto, que Kant não acertou no essencial: os tempos de paz que antevia como resultado de uma Luminosa Razão Vencedora não ocorreram, podendo até dizer-se que foi o contrário que sucedeu. O livrinho não tem culpa, e vale e pena ser lido ainda hoje, apesar de vivermos num contexto muito diferente daquele em que foi escrito. A discussão que lança permanece válida: poderemos excluir da violência na sociedade as razões de Estado? A circunscrição de todo o conflito a razões internas, que opõem indivíduos ou grupos, faria da guerra uma questão de polícia e não de exército. Dizendo de outra forma, se a guerra civil não pode ser eliminada enquanto expressão de dissenso dentro da unidade política, a guerra entre entidades soberanas pode desaparecer pela força da Razão – acompanhada da experiência democrática de uma cidadania plena e da implementação de instrumentos jurídicos adequados. Max Horkheimer e Theodor Adorno, logo após o final da II Guerra, defenderam num outro livro luminoso, «Dialektik der Auklarung», que desta Razão impositiva podia nascer, como nascera, um totalitarismo, mas outro filósofo alemão, Jürgen Habermas, não hesita em retomar a proposta de Kant, discorrendo sobre o seu aprofundamento, como faz no seu mais recente livro, «Um ensaio sobre a constituição da Europa». Peças e vozes para um debate que permanece em aberto.

Fazendo filosofia de uma outra maneira, servindo-se da literatura como arte de pensamento e arma de provocação, também Karl Kraus refletiu sobre a guerra e a trágica importância que ela tem na vida dos homens. Judeu, proveniente de famílias abastadas, nasceu na próspera Boémia em 1874 e morreu em Viena em 1936, tendo dedicado a sua vida a uma escrita torrencial e sempre polémica. Na revista «Die Fackel», que fundou, dirigiu e onde foi, durante largos anos, o único jornalista, publicou dezenas de milhares de páginas, numa experiência literária tão arrojada quanto rara. Evoco-o aqui a partir do seu drama, «Os Últimos Dias da Humanidade», publicado em Portugal pela Antígona e neste momento em cena no Porto, no Teatro Nacional São João. Nele, a guerra é-nos mostrada de um modo a que estamos pouco habituados.

Desenrolando-se nos anos da I Guerra, o drama de Kraus não mostra apenas a violência e desumanidade que caracterizou aquele conflito. Para lá da sua denúncia, o texto de Kraus desconstrói a guerra, até certo ponto chega mesmo a destruí-la, usando como arma o sarcasmo, expondo ao ridículo aqueles que a fazem e promovem. O desfile de personagens nesta gigantesca peça de teatro (a versão portuguesa tem mais de 400 páginas) vai desde o Arquiduque Frederico ao Imperador; do Industrial ao Agiota; do General ao Professor; do Jornalista ao Bêbado. Dezenas de personagens que se sucedem e às vezes se atropelam em busca de um efeito comum, exatamente o que referi: destruir a ideia de guerra pela exposição da desumanidade em que se funda. 

O lado grotesco da guerra – o ridículo das grandes proclamações, a prosperidade dos negócios e negociatas feitos à sombra da miséria e da destruição, a boçalidade dos generais e o menosprezo pelo povo em nome de quem se luta – são as armas de Kraus. Não se trata, aqui, de pensar as condições para uma paz idealizada mas de mostrar a guerra como expressão de uma vontade que em última instância é ilegítima, já que a ela não pode senão opor-se a impotência das suas vítimas. O confronto entre os que morrem e os que mandam matar e morrer, surge em vários momentos desta peça, quase sempre fazendo do humor um eficaz instrumento de denúncia. Bom exemplo é uma canção entoada por alguns oficiais:

«Houve flores, croissants, e caviar,
assim é que é, não há que hesitar
Do Estado-Maior somos a nata.
Essa honra ninguém nos arrebata.
Lá na trincha não há quem nos apanhe;
p’ra essas bandas nunca há champanhe.
Em vez de caviar numa torrada,
só sai morte de herói – bem aviada.
Nós comemos, el’s pagam: bom critério,
que tombar pela pátria é refrigério.
E hoje todos sabem de ginjeira:
nós pra tombar só c’uma borracheira».

O modo como esta singular obra acaba é também notável, sinalizando, a seu modo, uma visão de futuro. Não se confunde, naturalmente, com a que é proposta por Kant, mas é igualmente forte. Ao otimismo do filósofo responde o pessimismo do jornalista, que neste livro faz sua a voz de «um filho por nascer»:


«Crimes não qu’remos olhar,
fazei-nos já abortar.
Evitai nosso nascer!
Vossa infâmia acusaremos.
Pais-heróis assim não qu’remos.
Antes sem glória não ser.
Dor e gozo deste mundo!
O amor do meu pai, fecundo,
‘stá infectado, canalha!
Pra esse reino não iremos!
Dum cadáver descendemos.
O ar aqui cheira a mortalha».


Assim se apaga a luz no teatro e assim se encerra este texto, que depois desta proclamação nada mais se deve acrescentar.

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