terça-feira, 24 de janeiro de 2017

MOSCOSO

BRUNO SANTOS
Mocenigo Alba costumava almoçar no Nariz do Mundo, o único restaurante da aldeia de Moscoso, no alto da Serra da Cabreira. Nesse dia inesquecível, enquanto bebericava o verde tinto da casa e rilhava um pequeno pedaço de broa milha, um homem muito alto e muito vestido de negro aproximou-se da sua mesa. Parou junto a Mocenigo e ficou completamente imóvel durante alguns segundos, sem dizer uma palavra. Depois, com um gesto digno de um ilusionista, fez rolar sobre a toalha de linho três moedas de bronze.

Mocenigo pousou o copo de vinho e baixou ligeiramente a ementa que lia com a atenção de um ourives. À sua frente estavam três círculos metálicos exactamente iguais, em cujas faces se destacava claramente o número dez. Voltou uma das moedas ao contrário sem tirar os olhos da lista de sugestões do chefe. Na outra face do círculo reconheceu, de soslaio, o selo de validação usado em mil cento e quarenta e dois por D. Afonso Henriques, o primeiro Rei de Portugal - uma Rosacruz.
Regressou à leitura atenta dos pratos do dia, bebericou de novo o tinto e fez um estalido metálico com a língua.

- Seis. Yin. Móvel. Já almoçou? - perguntou ao homem de negro.

- Sempre que abro uma certa gaveta em busca de um par de peúgas - respondeu o homem - acontece encontrar lá as peúgas que buscava. Uma vez que jamais lá coloquei peúgas ou o que quer que fosse, pensei hoje, ao abrir a gaveta, que talvez deva ao Deus que provê tal magia um pequeno altar e um pau de incenso. O que lhe parece, Mocenigo?

- Acho que é de pequenos milagres que se faz o Corpo do Divino. Mas eles misturam-se uns com os outros, formam uma imagem difusa para que os olhos mortais os confundam com as coisas aparentes que tomamos por reais. Costuma usar meias pretas?

- Depois pensei melhor e lembrei-me que, sem prejuízo da devoção que devemos ao Deus do nosso coração, talvez não fosse mau passar a lembrar-me mais das gavetas onde os outros buscam mistérios como meias pretas e ser eu próprio a depositar lá essa magia, como um Deus abscôndito, um anjo desconhecido. O que lhe parece, Mocenigo?

- Vou no Cozido à Portuguesa.


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