terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

DA IN(UTILIDADE) DOS LIVROS

LUÍS CUNHA
Os brasileiros chamam criado-mudo àquilo a que nós, de forma bem menos poética ou criativa, chamamos mesinha de cabeceira. A criatividade linguística brasileira é bem conhecida, mas se a convoco aqui o «criado-mudo», numa crónica que, à semelhança das anteriores, tem os livros como mote, é apenas por me parecer que há muito quem veja nos livros uma espécie de criado-quase-mudo. Quero eu dizer que há muito quem reduza os livros a uma estrita função serviçal, postos em boa ordem na estante, guardando dento de si respostas prontas, certezas, virtudes ou pecados, tudo pronto a usar na ocasião adequada. Há ainda quem escreva livros com a intenção deliberada de os pôr ao ser serviço, veículos de «verdades» convenientes, como se a opinião de cada um valesse mais por surgir em letra impressa, com eventual destaque nos escaparates. No entanto, muitas vezes os livros surpreendem-nos. Abrimo-los como coisas mortas e descobrimos que as palavras que os enchem se rebelam dando-lhes nova vida. De criados-quase-mudos passam a agentes ativos, às vezes provocadores outras vezes reveladores, mas sempre guiando-nos para inesperados continentes. Claro que este sortilégio das palavras escritas não é válido para todos os livros. Alguns nascem já mortos: cadáveres adiados e inúteis, que jamais nos surpreenderão, antes estão condenados a dizer cada vez menos, exigindo reciclagem rápida e radical.

Vem esta discussão acerca da utilidade ou inutilidade dos livros a propósito de dois títulos com que me cruzei recentemente. O primeiro começou a ser escrito há mais de setenta anos e durante bastante tempo pôde repousar tranquilo nas estantes privadas e públicas. O que nele se narrava parecia o reflexo de um tempo agitado, reflexões profundas e válidas, certamente que incontornáveis para profissionais e diletantes das ciências sociais, da história e também da filosofia. Apesar desta importância, tinha-se tornado num desses criados-quase-mudos: ajudava-nos aperceber o passado; levava-nos a refletir sobre essa coisa imprecisa a que chamamos «natureza humana»; inquietava-nos, pelo menos a alguns de nós, mas as suas capas pareciam portas que se abriam e fechavam sobre o passado. De repente, porém, as suas páginas ganharam nova vida. O livro saltou das prateleiras onde o tínhamos arrumado para nos dizer que o que proclamava era também uma janela para o tempo que vivemos. Falo de «As origens do totalitarismo», de Hannah Arendt, brilhante exercício analítico (e literário) sobre um período trágico da nossa história comum, cujos fantasmas que convoca parecem agora regressar para nos assombrar. Quantas vidas pode ter um livro? No caso de livros como este, precisos e situados no tempo, a resposta deve depender mais de nós, que estamos vivos e fazemos a história dia-a-dia, que da vontade e mesmo da arte de quem o escreveu. Preferia, e certamente preferíamos todos nós, não encontrar ligação entre a dispensabilidade dos judeus e a dispensabilidade contemporânea de incontáveis cidadãos como nós – os improdutivos, os velhos, os estrangeiros esquisitos, todos os que se arrastam molemente sem ânimo nem espírito para a competitividade empreendedorista que governa o totalitarismo em que vamos mergulhando sem disso nos apercebermos.

O outro livro é a oposta simetria do que Hannah Arendt nos legou. Dificilmente poderíamos desejar melhor exemplo de inutilidade e desejo de servilismo que o livro de Cavaco Silva recentemente publicado. De «Quinta-feira e outros dias» aproveita-se o título. Quanto ao resto, abundantemente mostrado na imprensa da lusa paróquia, nada mais parece emergir senão o desejo de pôr palavras impressas ao serviço de um desígnio: legar à posteridade a excelência de um homem providencial que salvou os portugueses de todas as catástrofes, evitando também que o que de mau fomos sofrendo tivesse sido muito pior. Expressão do delírio de um Narciso de província, que constantemente pergunta ao espelho se há alguém melhor com ele, confundido o silêncio do espelho com sinal de assentimento à pergunta, este livro nasce já morto. Venderá muito, é quase certo, e no entanto de pouco lhe servirá. Essa é a magia dos livros, dos que adormecem apenas para depois nos surpreenderem com o vigor com que despertam, e daqueles tão profundamente inúteis que nem para criados-mudos servem. A diferença está, afinal, entre um corpo vivo que se arrasta agora e sempre nos corredores do poder e o pensamento de uma autora falecida que à lei da morte não se rende. As pequenas diferenças são, às vezes, a diferença toda.

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