terça-feira, 11 de julho de 2017

DO DESENCANTAMENTO DO MUNDO À NAÇÃO ENCANTADA

LUÍS CUNHA
Procurando dar conta das profundas transformações associadas à «modernidade» e à emergência do racionalismo prático como marca distintiva e fundamental daquilo a que chamamos «Ocidente», Max Weber cunhou o conceito de «desencantamento do mundo» (Entzauberung der Welt). Trata-se de um conceito complexo e denso, mas cujo núcleo fundamental podemos remeter para uma transformação na narrativa religiosa, desde logo reportada ao puritanismo, que se traduzia numa «desmagnificação», quer dizer, no abandono de um mundo governado diretamente por entidades e forças sobrenaturais e sua substituição por uma ordem cósmica redutível à «razão». As consequências desta ideia e o poder deste conceito foram profundas, porém, como este não é um texto de sociologia nem de filosofia, devo sublinhar que essas consequências e esse poder não encontraram a mesma expressão em todo o lado. Há um doce país, à beira-mar plantado, que resiste ainda e sempre ao Entzauberung der Welt. Um país que não vai em desencantamentos, que teima em manter-se encantado, sendo, às vezes, encantador – Portugal, pois claro.

Não falo sequer dos bruxos e bruxas mais ou menos exóticos que os clubes de futebol recrutam a bem do sucesso desportivo. Isso é banal, interclassista e transgeracional: quem nunca teve um gesto ou atitude propiciatória ao sucesso do clube do peito que atire a primeira pedra. Resistir ao desencantamento do mundo é outra coisa, é algo que se traduz na persistência do «pensamento mágico». Uma das suas características é a mistura de categorias, habilidade para que estamos predestinados. Veja-se, ainda no futebol, como misturamos, alegremente, sugestões de corrupção com indícios de tráfico de influências, como a isso misturamos doses maciças de conversa fiada e uma pitadinha de bruxaria. Resulta daqui um coquetel «magnificado» mas que em nada responde ao critério de racionalidade e de separação das partes que corresponderiam a um «pensamento desencantado».

O drama do incêndio de Pedrógão é outro exemplo da prevalência dessa forma de pensamento que insiste em meter tudo o que mexe dentro do mesmo saco. Decisões velhíssimas, algumas remontando a Salazar, têm o mesmo peso que outras novíssimas, remontando aos atuais governantes; as falhas operacionais não se distinguem dos problemas estruturais; as partidas do clima ficam no mesmo plano que as partidas pregadas pelo Siresp… Também aqui fazemos da habitual mistura uma mistela imprestável, que não nos permite distinguir e hierarquizar os problemas, definindo medidas de curto, médio e longo prazo. Ficamos, isso sim, com um mundo encantado onde nada se inscreve, como diria José Gil. A ministra não tem culpa, pois não foi ela que chegou o fósforo à floresta; os bombeiros também não pois são os donos das mangueiras; os donos do Siresp tampouco, e até São Pedro lava disso as mãos, declarando que vagas de calor é coisa própria do verão.

Outra característica do pensamento mágico que entre nós persiste e frutifica é a crença na proteção da divina providência. «Fia-te na Virgem e não corras…», avisam os racionalistas, ao que respondem os «Fatimidas» e outros crentes que «Ao menino (português) e ao borracho (tuga) sempre pôs Deus a mão por baixo». Vendo bem, Tomar não está assim tão longe de Fátima e talvez seja essa a razão que levou a nossa tropa a confiar na divina providência. Muito de vez em quando faziam uma passeata até aos paióis, mas apenas para os ver, assim combatendo o tédio e o colesterol. Como iam de passeio dispensavam as armas, já que ao borracho sempre põe Deus a mão por baixo. Foram-nos ao paiol à bruta e agora de nada nos adianta berrar de dor e de vergonha. Pensemos no futuro. Por exemplo, «Casa roubada trancas à porta»? Nã, nem por isso. Essas coisas são própria da tal racionalidade a que somos imunes. Aqui a malta verbaliza bué e quando nos cansamos de falar apelamos ao mundo encantado de que não arredamos pé, tanto assim que o ministro e o chefe do Estado-Maior já prometeram ir a Fátima a pé e de braço dado caso as armas apareçam.

Última nota, e talvez o mais profundo e dramático exemplo da persistência do pensamento mágico entre a lusa gente, tem a ver com a nossa ingénua fé na chegada do redentor. Uma fé inabalável, e que sempre nos trama, na vinda de uma criatura providencial que resolverá todos os nossos problemas. Entretivemo-nos com isso um século inteiro, primeiro com o presidente-rei Sidónio, depois com o beato Salazar, finalmente com Cavaco Silva, último avatar de um genealogia de homens providentes que souberam cavar bem fundo o buraco onde nos enterramos. Estes homens providentes são também «santos». Assim os vemos, não havendo outra explicação para o investimento simbólico que fizemos em figuras tão medíocres como Cavaco Silva. A predestinação deste filho de Boliqueime, tal como a dos outros exemplos dos prometidos heróis da nossa deprimida nação, não se revela a qualquer análise racional e não resistiria ao desencantamento do mundo profetizado por Weber. Todavia, o nosso mundo é um mundo à parte. Terra ungida a vinho e alimentada a tortas de Azeitão, daquelas que se derretem na boca como hóstias: não há mal que evitemos nem bem que nos chegue senão por graça divina. Nem mesmo quando um paiol nos explode nas ventas e os incêndios ameaçam abrasar terras e gentes encontramos força para rever caminhos. Venham bruxos, duendes, santinhos de pau oco travestidos de políticos. Afinal, o que explica o sucesso e o fracasso não é o trabalho, o empenho e a inteligência; é a mezinha e a pata de coelho, a ferradura na porta e o alho no balneário, ou seja, esse mundo encantado (raramente encantador) em que teimamos viver.

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