terça-feira, 4 de julho de 2017

O GÉNIO E OS OUTROS


REGINA SARDOEIRA
Desde que, no dia 27 de Junho, Salvador Sobral encerrou o concerto "Juntos por todos" e disse uma inconveniência, certas vozes puritanas caíram-lhe em cima, com os mais diversos e estúpidos comentários. 

Eu, que vi o concerto, pela televisão, entendi o cantor (embora, na altura, não tenha percebido a palavra que ele disse e tanta tinta (virtual) fez correr). 

Em geral, leio os títulos das publicações do facebook, ou pouco mais, e passo adiante. Mas desta vez e, porque gosto do Salvador Sobral e fiquei repugnada, literalmente, com tantas injúrias, fui lendo textos e respondendo a comentários. Deixo aqui um deles, dirigido a um comentador, muito ofendido com a frase do Salvador Sobral. 

"Vou responder ao (...) desta vez definitivamente. Sim, eu ouvi a frase do Salvador Sobral e percebi o que ele quis dizer. Não sei se o (...) sabe, mas eu sou uma escritora, não reconhecida a nível nacional; mas conheço a fórmula que poderia levar-me a escrever, em poucas horas, um bestseller e depois outro e ainda outro. Não o faço, porque esse acto seria uma desonestidade e ganharia fama à custa de qualquer coisa que não me representaria. Pois bem: Salvador Sobral ganhou os festivais com uma canção, escrita e composta pela irmã e encomendada para o festival português (que eu não vi). Ora, ele já tinha a sua carreira em curso e um disco lançado, feito de músicas, tipo jazz, totalmente diferentes de "Amar pelos dois" e que ninguém ouve ou aplaude ou canta de cor. A fama desviou-lhe o percurso. O jazz, e outros géneros que ele cultiva, são estilos musicais para pequenas audiências, e o improviso, a atenção dada aos demais músicos, que são co-autores, são algumas das especificidades desses temas, pouco acessíveis a públicos de massas. O que eu vi nesse concerto* foi o artista (porque o é, de facto) a querer cantar outra música e a começá -la (aliás, na legenda da televisão apareceu logo, " Amar pelos dois" , depois corrigida). Decerto, porque o Salvador encerrava o concerto, ou porque lho disseram ou, fosse pelo que fosse, ele saltou da música que tocava e cantava, para a "tal"; quem viu sabe que ele mal precisou de abrir a boca pois as 14 mil pessoas que estavam no local a cantaram por ele. Foi então que ele fez um improviso, imitando um trompete com as mãos e foi então que o aplaudiram ainda mais. Nesse momento, decerto aborrecido com a repetição do tema que o obrigam a cantar, creio que em todos os concertos, quando ele quer lançar o seu disco, composto antes da Eurovisão, percebendo que a fama lhe granjeou um sucesso que não o representa, mas não o larga, ele soltou aquela frase que, mais uma vez, lhe deu fama - desta vez ao contrário. Eu percebo-o e, regressando a mim, se decidisse ser uma autora de best-sellers, nunca me perdoaria por dever a fama a um produto medíocre. Não estou a dizer que "Amar pelos dois" é uma canção medíocre, eu confesso que gosto bastante, mas, como conheço outros temas do Salvador Sobral e percebo que caminho ele quer seguir, entendo-lhe o comentário (que eu não faria naqueles termos, porque eu sou eu e ele é ele, só por isso). Mais tarde, ele desculpou-se pela suposta inconveniência. Eu não o teria feito."

Salvador Sobral é uma pessoa fora do vulgar, não somente um músico /cantor incomum, mas também uma pessoa incomum - reforço. Incomodou muita gente naquele dia, parece. 

E eu lembrei-me imediatamente, de outras pessoas também invulgares e incómodas, se bem que geniais.

Beethoven, um dos maiores músicos de sempre, era insuportável, tratava com sobranceria os nobres que lhe pagavam as composições, gesticulava no meio da rua, espantando cavalos e atemorizando pessoas, lavava-se no quarto e deitava a água para o chão que caía em cima dos vizinhos de baixo, etc. Salvador Dalí pintou com excrementos, tocava campainhas na rua quando os transeuntes não olhavam para ele, encheu um Rolls Royce branco de couves-flor que depois deixou apodrecer lá dentro, escreveu uma autobiografia a que chamou, "Diário de um génio"...incomodou toda a gente à sua volta. Mas é um pintor genial. Van Gogh nunca soube o que fazer da vida, foi pastor numas minas de carvão na Bélgica, em Borinage e a igreja expulsou-o porque ele resolveu descer às minas e encontraram-no sujo e andrajoso, recolheu uma prostituta grávida e dispôs-se a criar-lhe o filho, para escândalo da sua família e da própria mulher acolhida, cortou uma das orelhas para presentear o melhor amigo (Gauguin) que lhe fugia por não poder suportá -lo, nunca vendeu um quadro e disparou, por fim, contra si mesmo. E contudo, é um dos maiores pintores de todos os tempos. Fernando Pessoa era um alcoólico, nunca conseguiu publicar nada (a não ser a Mensagem), viveu sozinho e trabalhou como correspondente estrangeiro, para não morrer de fome, criou inúmeros heterónimos, decerto para fugir de si mesmo. E, não duvidemos, é um dos mais geniais poetas de sempre. Parece que Mozart foi um músico tão genial, quanto uma espécie de idiota desbocado e sem maneiras... Einstein foi um péssimo pai e ainda pior marido... 

A lista poderia prosseguir mas creio ter ilustrado a questão. O génio não pode ser aferido pelos padrões da normalidade, o artista, se o é, pouco terá em comum com o resto das pessoas, e, quando tenta falar a linguagem dos outros (para a qual não foi feito), o resultado pode ser bizarro. 

Salvador Sobral encaixa neste painel, queiram ou não queiram os que não o compreendem. E eu espero que a vida lhe chegue para desenvolver o génio que tem.

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