segunda-feira, 24 de julho de 2017

VINGAR NA VIDA É UM ACTO DE CORAGEM

JOANA BENZINHO
Um dia em Canhabaque fui visitar a escola primária de uma das Tabancas, levada pelo Régulo e com algum marerial escolar para deixar às crianças. Estas apareceram entusiasmadas na escola, mas todas vindas da rua. Ora das casas, ora do caminho que levava à praia, ora dos terrenos onde andavam a trabalhar com os pais. Os pequeninos sentaram-se ordeiros nas velhas secretárias de uma sala sem portas, janelas e só com um pouco de tecto. Estavam ansiosos por receber o presente, claro, mas percebemos na altura que mais ansiosos estavam por ter um professor que os ensinasse. Há mais de dois meses que o professor tinha partido da ilha sem voltar ou dar notícias. Queixava-se do salário que não recebia há meses, da família longe, da falta de condições para ali viver e se alimentar, dependendo da pura caridade dos habitantes da Ilha. Um dia cansou-se e partiu sem olhar para as dezenas de meninas e meninos que deixou votados à ignorância e iliteracia.

Nas ilhas tudo é um permanente desafio. E estudar ou ter acesso a cuidados de saúde são mesmo os maiores.

O Arquipélago dos Bijagós conta com cerca de 80 ilhas, mas apenas cerca de 20 são habitadas. A distância até ao continente, e principalmente até à capital, dificilmente contabiliza menos de duas horas em barco a motor, ou mais algumas, se for uma piroga tradicional das que normalmente são usadas pelos licais. Por serem mais baratas mas também por serem, até há bem pouco tempo, o único meio de transporte marítimo disponível.

Canhabaque tem a vantagem de se encontrar relativamente perto de Bubaque, uma das ilhas mais povoadas do arquipélago, onde se pode encontrar uma escola que tem ensino até ao 12 ano e se tem acesso a alguns cuidados de saúde. Mas nem sempre é fácil para uma família meter os seus filhos a estudar fora. Porque há custos incomportáveis. Há receios legítimos de enviar crianças tão novas para uma outra ilha para viverem sozinhas. Mas há quem o faça, como a familia do J. Ali a escola não começa necessariamente aos 6 anos e, pelos 9, lá foi ele numa piroga até Bubaque onde o esperava uma ilha totalmente desconhecida, mais populosa que a sua e sem familiares ou amigos por perto. Hospedado num quartinho de uns conhecidos da família, ali se deixou ficar a estudar e a trabalhar desde pequeno para ajudar a pagar o quarto e a comprar comida. Apesar das dificuldades e da orfandade imposta por aquela insularidade sem oportunidades, foi crescendo, avançando nos estudos, e amealhando algum dinheiro para ajudar a familia. Morreu muitas vezes de saudades da família, confidenciou-me na conversa que tivemos debaixo do mangueiro, num final de tarde quente. Chamou os irmãos mais novos, encolheu-se um pouco na cama improvisada para irem cabendo e com os trocos que fazia nos biscates do dia a dia foi-lhes pagando os estudos. Chegou ao 12 ano e a vontade de aprender sofreu um forte revés. Bissau fica longe e não há por lá familiares ou amigos que lhe garantam um cantinho no chão para dormir. A Universidade também não sai barata para quem só pode contar com o pé de meia que foi fazendo e gastando com os irmãos. O sonho do J passa agora por acabar de pagar os estudos aos mais novos da família e juntar algum dinheiro para voltar para Canhabaque onde quer fazer uma casa perto dos pais. Mas ambiciona mais que isso. Quer uma escola para a sua ilha onde não falhem os professores e que tenha a possibilidade de ensinar até ao 12 ano. Porque os os meninos das ilhas também devem ter direito a sonhar com o futuro, diz-me ele e não ter que abandonar as famílias ainda crianças para poder aprender a ler e a escrever. E como ele tem razão, penso, enquanto o vejo partir apressado e de sorriso rasgado para mais um biscate.

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