terça-feira, 29 de agosto de 2017

CLARIVIDÊNCIAS

REGINA SARDOEIRA
O nosso tempo, este século XXI alucinado e alucinante, nada tem de facto que seja extraordinário ou sequer notável, basta olharmos à nossa volta com alguma circunspecção e depressa entenderemos em que espécie de logro nos vamos acoitando, crentes de que nos doura uma superioridade ou uma inteligência que não existia noutras eras e à qual bruscamente aderimos no salto do milénio e do século. Falta-nos, porque os perdemos, reenviando-os para os nossos sucessores intelectuais – as máquinas – a criatividade, o engenho, a força, o génio, em suma! Falta-nos o vigor do intelecto, o culto da excepcionalidade, o apego ao espírito de elite, o companheirismo na tarefa nobre, a união em torno de uma ideia, a luta por uma utopia, a crença numa doutrina, a experiência da comunhão…falta-nos tudo!

Outrora, acreditávamos no poder dos cérebros lucilantes e entregávamo-nos a eles, crentes de que os animava o espírito supremo e que na senda deles atingiríamos o nosso cume. Hoje, cada um de nós julga ser o paladino da virtude e da glória e, apegado às suas pequenas ilusões de bolso, desdenha modelos, chefes, paradigmas ou mestres.

Platão amou Sócrates e rasgou a sua obra poética quando percebeu o manancial infinito da filosofia – mas soube manter-se poeta e fê-lo nas espirais portentosas da alegoria e do mito; Aristóteles escutou e sorveu as lições de Platão na Academia – mas partiu para a sua caminhada, orientando para a terra a mão que o mestre erguia para os céus; Kant seguiu Descartes e fez-se racionalista dogmático – até que David Hume o atacou de chofre e lhe deu a mão, acordando-o do sono dogmático e fazendo-o racionalista crítico; Hegel acalentou o kantismo – até entender a esquizofrenia lúcida do mestre de Koenigsberg e proclamar a unidade da Ideia Absoluta na espiral infinita da progressão dialéctica; Marx fez-se hegeliano de esquerda na senda de Feuerbach – mas inverteu o idealismo dialéctico dando-lhe um cariz humanista; Nietzsche veio dos gregos até Wagner e Schopenhauer e de uns retirou a pureza trágica dos inícios, de outro a sublimidade heróica da ópera como catarse de um mundo que havia assassinado a aura trágica e do outro a vontade de viver, logo transposta e enunciada como vontade de poder; Freud inventou uma fantasia urdida nos êxtases oníricos e, nos sortilégios mesmerianos aglutinados à ciência de Charcot, dela fez terapia, criando a psicanálise; Boole e Frege reanimaram a lógica aristotélica à luz da matemática e nela se inscreveu Bertrand Russell e mesmo Wittgenstein, o paladino dos eternos enigmas filosóficos, conseguiu brandir o atiçador para Popper e abandonar a sala pois, «sobre aquilo que não se pode falar deve manter-se o silêncio»! Brandir atiçadores e abandonar a sala, para não ter que percorrer o caminho batido dos problemas filosóficos, esses, que constantemente se transmutam em enigmas, por muito que intentemos decifrá-los, venham ou não até nós o reino de todos os Poppers, rasgar poesia inútil quando a filosofia nos acena com cânticos e maravilhas, ouvir o sentido da terra em choque com os arquétipos do empíreo, arrasar a arrogância wagneriana e eleger um super-homem que é o caminho do homem, ele próprio uma ponte esticada entre o animal e o super-homem, criar uma fantasmagoria esquizofrénica em colisão com os dogmas urdidos num racionalismo metódico… eis o que hoje não somos capazes de fazer, pois trava-nos o ressentimento, e só sabemos tapar os ouvidos e seguir atarantados as nossas vielas tortuosas – mesmo quando a inteligência solta os seus clarins!

Toda a gente escreve e pinta e esculpe, toda a gente faz política e sobe às cátedras debitando um saber frouxo, urdido na mentira do tempo, toda a gente ascende à ribalta, erguendo a voz e enfunando o peito, ousando permitir que os holofotes lhe desvendem a terrível carranca, toda a gente sabe sempre tudo e sempre mais que toda a gente! Ninguém acolhe o conselho do mais sábio, ninguém respeita a hombridade do mais recto, ninguém ouve a crítica do mais justo, ninguém aceita a correcção do mais atento. Parece que os próprios bebés trazem em si o conhecimento todo no acto de nascer e, quando crescem, é como se nada pudessem já aprender, velhos que começam desde logo a ser para as arenas sublimes do convívio com os predestinados. E é por isso que hoje os lúcidos todos se calam e se escondem, receosos que os descubram e os confundam com todos esses néscios vindos de nenhures e para nenhures caminhando- e todavia crentes na sustentabilidade do que os tornou célebres. Por isso, não procureis o génio nas montras dos livreiros, nas paredes das galerias, nos ecrãs dúbios dos vossos cinemas privados, nas magazines fanadas ou nos slogans publicitários; sabei que eles estão mudos e assim permanecerão até que este tempo se esgote e dele nasça, num parto aterrador para os que até agora reinaram, a saga do futuro. Creio nesse tempo e só a ele me rendo!

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