quinta-feira, 9 de novembro de 2017

OS FANTASMAS DAS MINHAS BIBLIOTECAS

ANABELA BORGES
A vida é como as histórias dos livros. Está sempre a dar voltas e a trocá-las.

Quando eu era pequenina, quase não havia bibliotecas. E quando eu cresci, prosseguindo estudos no ensino secundário, também não. Só muito mais tarde, já na faculdade, a biblioteca era, de facto, UMA BIBLIOTECA.

As únicas bibliotecas que me lembro de ter conhecido e visitado em pequena eram as que existiam nas casas das pessoas que eu frequentava, vizinhos e familiares, incluindo a dos meus pais. Eram as estantes com uns tímidos conjuntos de livros. Tirando os livrinhos que me ofereciam, com historinhas infantis, os livros das estantes foram os que mais despertaram a minha atenção e a minha curiosidade na infância, já que fazia de tudo para me esgueirar para essas salas de estar, para os ler, folhear, espreitar, cheirar. Bibliotecas, nem vê-las! Isso significa que eu passei parte da minha meninice e juventude a ler, e outras vezes só a tentar ler, os livros dos adultos.

Está certo que eu era uma menina de província desejosa de me perder num abismo de livros, como a Alice do país das Maravilhas a cair por aquele buraco sem rumo, mas já me contentaria se por perto houvesse um espaço onde pudesse agarrar os livros das estantes e sentar-me a um qualquer canto a ler. Mas não. Tirando as casas das pessoas, como eu já referi, não havia espaços a que pudéssemos chamar bibliotecas.

Aos domingos, de mão dada com o meu pai, ia à missa, na igreja de São Gonçalo, e no fim sempre passávamos pelo museu (como eu adorava passar pelo museu de mão dada com o meu pai!). E naquela passagem rápida aos domingos pelo museu, eu via livros antigos, códices e outros panfernálios de papel (inventei agora a palavra, porque muitas vezes dá-me jeito inventar palavras), panfernálios, dizia eu, presos em montras de vidro, e eu ficava cheiinha de pena deles. Queria libertar aquelas palavras, porque, na minha cabeça de menina-pequenina-que-ia-à-missa-de-mão-dada-com-o-pai, os livros nunca poderiam estar presos ou fechados. O meu pai dizia que aqueles livros tinham de estar protegidos das mãos das pessoas, porque eram muito antigos, mas para mim não havia entendimento no que tocava a fechar livros em vitrines.

Quando fui para a escola primária, também não existia nenhum espaço que se pudesse comparar a uma biblioteca, por mais pequena representação que essa significância tivesse, nem que fosse apenas uma estante com livros. Não havia. Se havia, estava escondida, num qualquer esconso da escola que eu às vezes imaginava que existia. À vista, não havia livros. E mais: não há nenhuma (nem uma!) história que eu tenha lido nessa escola que tenha retido na memória (ok, tirando as cantigas, que também são histórias. Tirando as cantigas, nem uma!). A única vez que, na escola primária, ouvi ler expressivamente uma história (e desse excerto eu nunca me esqueci. Só não tinha falado ainda porque essa foi uma história clandestina que entrou na sala de aula) foi pela voz da filha adoptiva da professora, que andava para aí no 7.º ano. A rapariga queria ser professora; aproveitou que a mãe não estava na sala, retirou o livro de Português do saco e começou a ler-nos uma história, muito expressivamente, tão expressivamente que cativou a atenção de toda a turma. Até a Jacinta, que andava sempre a cirandar, com a saia em roda, quando a professora não estava na sala, foi, de imediato, a correr, sentar-se, para ouvir a história. Quando a professora entrou na sala, a rapariga (que queria ser professora, mas eu já estava a imaginá-la como atriz) lia-nos a história com tanto fulgor e ânimo por ter uma plateia assim cativada, que não deu pela entrada da mãe, que não teve mais se não – “TRÁS!”, dar uma bofetada na rapariga, que lhe estava a encher a turma de molezas e outros fracos vícios. 

Quando fui para o ciclo, a biblioteca da escola estava sempre fechada. Ficava no lugar mais longínquo, solitário e assustador da escola. Era preciso descer os barrancos de escadas, sempre, sempre, até se chegar quase ao rio, e ir dar-se a um edifício, de porta fechada e sem janelas, onde diziam que era a biblioteca. Eu cheguei a ter dúvidas se ela existia mesmo. Só fiquei a saber que existia porque a dona Adelaidinha, um dia, sacou o molho de porta-chaves do bolso, procurou, procurou, encontrou a chave da porta da biblioteca, abriu-a e deixou-nos espreitar. Na verdade, não vi lá grande coisa. Era muito escuro e tinha um cheiro estranho de coisas fechadas, não tinha o cheiro dos livros das casas. E – “CHIU!…”, fez a dona Adelaidinha, para não dizermos a ninguém que nos tinha mostrado a biblioteca. Ainda hoje não sei bem que lugar era aquele, mas fui inventando histórias para lhe dar existência.

Já andava no liceu, quando a professora de Literatura nos mandou fazer um trabalho sobre Eça de Queirós. Disse – “VÃO À BIBLIOTECA”. E nós andámos pela escola a perguntar onde era a biblioteca. Descobrimos que ficava no cimo de uma escada (os coxos nunca teriam acesso a ela), naquela porta fechada ao cimo das escadas do polivalente, que sempre víramos ali, mas que, com o tempo, acabámos por ignorar porque não passava de uma porta fechada. Foi difícil o processo de descobrir o que fazer para entrarmos na biblioteca. Até tivemos de ir falar com o presidente. Depois de um interrogatório sobre o teor do trabalho e as intenções da professora, o presidente indicou-nos uma funcionária que abriu a biblioteca e ficou de olhos cravados em nós até termos as pesquisas todas feitas e os livros novamente arrumadinhos nas estantes como se nunca de lá tivessem saído.

Certa vez, ainda nos estudos do secundário, recorri à biblioteca municipal. Achei que seria a forma mais fácil de eu aceder aos livros. A biblioteca municipal era uma sala pequenina a cheirar a mofo e atacanhada de livros até ao tecto. Estava fechada e era necessário ir ao museu pedir ao funcionário que fosse abri-la. No meio daquele emaranhado de livros atravancados por todo o lado, demorei uma tarde inteira à procura de um livro, que a professora de Literatura tinha recomendado, e não o encontrei. Por longos tempos, nessa época, não mais recorri aos serviços da biblioteca municipal.

E não vamos mais longe: em 2002, fiquei colocada numa escola onde a biblioteca estava fechada e, dentro da biblioteca fechada, os livros estavam fechados à chave em armários com portas. Mas quero acreditar que já não há mais bibliotecas assim.

E é assim que hoje posso dizer às crianças e jovens como são afortunados, pois têm os livros nas escolas ali, mesmo à mão de semear, ou melhor, de colher!

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