segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

OS FILHOS DO LIXO

JOANA BENZINHO
Há uns anos era comum ver-se uma mancha de fumo lá para os lados de Antula, na parte norte da cidade de Bissau, que se dissipou com as obras de requalificação da estrada da "Volta de São Paulo". Esta estrada, que vem de perto do aeroporto e segue até à Alfândega, em Bissau velho junto ao Porto, era um projeto bem antigo de fazer uma circular à volta da capital e que esteve na gaveta vários anos, enquanto os buracos ganhavam terreno na picada e transformavam esta em enormes crateras intercaladas com pequenas áreas planas. 

Aquando do alcatroamento da estrada, a lixeira foi mudada de lugar, permitindo-nos usufruir de novo da beleza daquele vale repleto de bolanhas de tinalidade verde-vivo, aves e crianças que por ali se deliciam com uma banhoca refrescante ou pescam uns quantos peixinhos para a refeição da família.


Mas foi sol de pouca dura. A lixeira voltou ao local do crime e hoje, cresce a passos largos para a vizinhança do cemitério, de um lado, e das bolanhas, do outro.


A mancha de fumo voltou há uns dois anos a ensombrar a cidade de Bissau. Os jagudis (abutres) voltaram em força para esta zona da cidade. E as crianças... essas começaram a ser cada vez mais vistas por aqui.

Aquele quadro honrendo, que só conhecia de filmes e documentários sobre realidades distantes e por isso quase inexistentes para mim, está agora a paredes meias com o meu quotidiano.

Meninas e meninos, em idade de ir à escola e de brincar, começam ali bem cedo, de saco de plástico na mão, a procurar o que não consigo imaginar, entre o fogo que lhes queima os pés, o fumo que lhe trespassa os pulmões e o cheiro que aprendem a ignorar, mas que deixa qualquer mortal nauseado à passagem.


É dali que tiram o alimento diário, é dali que obtêm algum benefício que lhes permite sobreviver ao passar dos dias.


E nós, impotentes, passamos diariamente em carros que aceleram à miragem deste quadro, fechando os vidros dos carros com um esgar de nojo pelo cheiro e pelo que vemos. Quando estou em Bissau, é passagem obrigatória para uma das escolas que apoiamos na ONG Afectos com Letras e é frequente dar por mim a fazer um esforço para não ceder à tentação de parar o carro para ir ver de perto este horror a que algumas crianças chamam modo de vida e tentar pô-las em lugar seguro. Mas como e onde? Como lhes explicar que vivem num verdadeiro inferno se não tenho nada para lhes dar em alternativa, como uma casa, um rendimento alternativo para sobreviverem, uma oportunidade, um futuro? A impotência é evidente e o confronto com esta realidade demasiado incomodativo. Pelo menos para mim.

Aqui acumulam-se os lixos urbanos da capital que conta com quase um milhão de habitantes, e que são depositados e queimados sem critério ou qualquer triagem. Nem todos, alguns acabam queimados em plenas artérias de Bissau (fumarolas mais pequenas mas nem por isso menos chocantes) ou mesmo no hospital onde já testemunhei à queima de resíduos hospitalares mesmo ali, ao lado de pacientes, familiares, enfermeiros e médicos. 

Os fumos da lixeira, altamente tóxicos, afectam estas crianças e todos os bairros da periferia norte de Bissau. As partículas voam sem pudor, entre um fumo denso e malcheiroso que envolve gente, carros, bolanhas e casas.

Estamos perante um verdadeiro atentado à saúde pública.

E é destes detritos que sai o alimento e o sustento das meninas e meninos que parecem verdadeiros fantasmas a pulular por entre uma bruma que a todos nos deveria envergonhar.

Até quando?

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